Começa hoje o segundo capítulo, com mais segredos a serem revelados. Leiam e aproveitem o prazer da leitura.
CAPÌTULO DOIS - PARTE UM
- José, posso falar contigo um segundo?
- Claro - respondeu ele.
O escritório dele era o maior de todos da empresa. Além do espaço com a sua secretária de mogno brilhante, do lado oposto havia uma grande mesa oval, para doze pessoas, onde normalmente decorria um grande número de reuniões.
Juliana sentou-se no sofá de eco pele preto, que antecedia duas cadeiras e a mesa do sócio.
- Passa-se alguma coisa? Soube que tu e o Rafael voltaram a discutir ontem...
- Sim, é verdade. Olha, não vou estar com rodeios, até porque já sabes que não faz o meu feitio. Vou directa ao assunto. O Rafael jantou em minha casa ontem à noite e eu contei-lhe... Eu falei com ele sobre o Filipe, sobre a empresa, ele até conheceu o Dinis e deu-se bem com ele, imagina... - descarregou tudo de uma vez, porque ainda não sabia exactamente quais seriam as consequências de tudo o que acontecera e agora que o dizia em voz alta tudo parecia ainda mais complicado.
- Decidiste dar-lhe uma oportunidade? - questionou ele, contornando a secretária e sentando-se ao lado dela.
- O problema é esse, José. Convidei-o para ir lá a casa para podermos conversar à-vontade, mas para ser uma conversa definitiva. Eu queria que ele entendesse que as coisas não iriam dar certo, mas...
- Mas como se costuma dizer, virou-se o feitiço contra o feiticeiro.
- Sim...
- Qual é o teu receio agora, Ju?
- Receio que ele agora não saiba distinguir as coisas. Uma coisa é quando estamos aqui no trabalho, outra coisa é quando estamos fora dele.
- Ju, nem todos temos essa brilhante capacidade de ver tudo a preto e branco. Somos humanos e infelizmente por vezes não conseguimos dissociar o trabalho da vida pessoal.
- Mas devíamos ser todos capazes disso.
- Olha, Ju, - falou, no seu típico tom fraternal com que habitualmente lhe presenteava quando ela lhe colocava um problema - tu sabes que nunca fui contra relacionamentos aqui na empresa, até porque - volto a repetir - somos todos humanos e por vezes é difícil controlarmos o que sentimos, eu normalmente recomendo apenas que tentem não trazer muito da relação para aqui. Quanto a vocês, com relação ou sem relação, discutem tanto que só Deus sabe porquê. Por isso, Ju, se achas que te podes deixar envolver com ele, nem que seja um pouco, aproveita. Conheço o Rafael muito bem e ele tornou-se praticamente o meu braço direito, por isso, se procuras a minha autorização está dada.
- Sinto que estou a trair o Filipe - admitiu ela, a medo, olhando para a janela, que estava por detrás da secretária.
- Ju, não admito que digas isso. Nós os dois gostávamos muito dele e nós os dois sabemos também o bom homem que ele era. Mas ele é que nos traiu, ele é que não soube que nós estávamos ali para ele, para o ajudar a ultrapassar tudo.
- Mas...
- Não há mas nem meio mas. Se queres passar mais tempo com o Rafael, se o queres conhecer, aproveita querida.
- Sabes quem mais ele conheceu ontem?
- A dona Isabelinha. Não acredito! - exclamou, rindo.
Abri a persiana pela manhã e observei o mundo lá fora, satisfazendo-me por estar protegida das intempéries deste Inverno.
Peguei no embrulho rasgado, que estava em cima da cómoda, e retirei a prenda que me tinham oferecido no dia anterior: uma bonita écharpe em preto e branco. Admirei-a, pensando com qual conjunto conjugaria melhor aquela peça, mas por enquanto tinha que saber onde a guardar, quando não a usasse. A gaveta das écharpes e cachecóis estava cheia e, como tal, tinha que os mudar de lugar.
Foi então que me lembrei de uma das gavetas do meu roupeiro. Era a última de um conjunto de três que estavam na vertical e que ficava mais perto da parede do quarto. Estava esquecida, quase imperceptível ao dia-a-dia. Por estar tão escondida, eu guardava lá com frequência papéis, fotografias, enfim objectos que tinham um certo significado para mim.
Então, ao abri-la encontrei, no topo, um guardanapo com o símbolo de um restaurante. Era uma lembrança de uma viagem que tinha feito a Coimbra, na altura da faculdade, nas raras vezes em que todos se conseguiram juntar para ver uma exposição de fotografia que se espalhava pela cidade. Juntamente com isso, estavam fotografias de tempos esquecidos, que não voltaram a se repetir.
Retirei-os e coloquei-os delicadamente no chão.
Em seguida, retirei papéis de coisas escritas por mim, de momentos vividos com intensidade. Mas ignorei-os e por baixo encontrei uma pequena caixa de metal, já com ferrugem, de uns bombons que eu gostava muito e que despertou mais a minha atenção. Tirei a tampa e surpreendi-me com o seu conteúdo. Era uma espécie de junção entre a vida e a morte, a esperança e a mágoa. Havia uma folha muito fina dobrada em quatro. Desdobrei-a. Era o documento que datava da altura do meu nascimento: tinha o meu nome, o meu pequeno peso e a minha pequena medida, tendo sido acrescentada uma observação importante, o defeito com que tinha nascido no coração. A este papel estava associada a enorme luta pela sobrevivência, minha e da minha mãe. Foram mais de dois anos a resistir a constantes infecções, doenças perante um coração bastante debilitante. Lembrava-me constantemente das histórias que a minha querida progenitora contava com sofrimento e orgulho. Eu estava viva!
Mas ele não estava.
Ao lado deste documento, vi a coleira dele. Mais de treze anos a acompanhar-me nas várias etapas da minha vida: viu-me ter sucesso na escola, sem o entender que o era, viu-me começar a namorar, viu-me a casar. Era tudo para mim. Mas até os melhores amigos se vão e depois de ter sido atingido por um tumor na anca e sem esperança de cura, tive que lhe dizer Adeus. Era o meu cão, o meu amigo, o meu menino, como lhe chamava com frequência. Mas tenho as melhores recordações dele, de quando ficava feliz quando me via chegar a casa, de quando sabia que eu ia levá-lo a passear... Fiquei triste ao ver aquilo, mas por outro lado, dei graças por o ter tido na minha vida.
Tirei todos os objectos da gaveta e decidi colocá-los numa das gavetas da minha mesa-de-cabeceira. Afinal, as lembranças eram mais importantes do que pensava. Tinham sido momentos vividos por mim, que por mais que me doessem, não podiam ser relegados.
Arrumei todos os cachecóis e écharpes, limpei as lágrimas e fui até à cozinha tomar o pequeno-almoço.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias
... porque te amo. Choro porque te odeio.
Fazes-me tão feliz nuns dias e tão triste noutros.
Hoje acordei deprimida, simplesmente pelo motivo de mal me teres dirigido a palavra quando chegaste do trabalho no dia anterior.
O jantar foi devorado, sem a apreciação do devido sabor do repasto e sem um único elogio pelo prato especial.
Sinto que nos estamos a afastar. Talvez seja apenas pelo dia-a-dia que se tornou tão monótono, apesar de fazermos os impossíveis para que isso não aconteça.
Sinceramente não sei.
A única coisa certa é que me dói só de pensar que estes anos que estamos juntos poderão se esfumar numa questão de minutos, por uma pequena troca de palavras mal interpretadas. Imagino vezes sem conta como as nossas conversas poderiam tomar outro rumo, mas volto sempre ao mesmo: ao desfecho final doloroso de uma relação.
Não é isso que eu quero... E tu?
Mesmo que quisesse adivinhar não saberia qual seria a tua resposta, porque cada vez mais te retrais na minha presença, cada vez mais te envolves nos teus hobbies e não deixas espaço para eu entrar. Só te posso perguntar porque fazes isso. Mais nada...
- Se não penso em querer mais para mim?! É uma boa pergunta... Sinceramente, não penso muito nisso, como te disse, tenho o Dinis e o meu...
- Juliana! - gritou uma voz feminina vinda do corredor. - De quem é aquele carro que está ali fora? Estás com visitas?
A mulher aproximava-se cada vez mais.
- É a minha sogra - disse Juliana, desviando o olhar e baixando a cabeça, envergonhada. Começava a sentir-se tensa, muito tensa.
- Ex-sogra - corrigiu ele mais uma vez, erguendo o rosto dela com o dedo indicador direito, esboçando um sorriso de empatia.
A mulher de idade apresentou-se com um fato em tweed, em tons rosa, e o cabelo grisalho bem arranjado. Tinha um aspecto austero e impaciente.
- A tua companhia é um homem? O que é que fazes com um homem na casa do meu filho?
Juliana levantou-se do sofá. Tentou recompor-se da visita inesperada daquela mulher odiosa, respirando fundo, e apresentou o Rafael como colega de trabalho, esclarecendo a posição dele na empresa, sabendo de antemão que a sogra dava muita importância à posição profissional, ainda que nada fosse suficiente para os seus parâmetros, tal como sucedeu com o filho.
- Isso não me interessa tão-pouco, porque não me vais dizer que estás numa reunião de trabalho. Não me enganas, sua interesseira, não vou permitir que comeces a meter desconhecidos aqui na mesma casa onde o meu neto vive.
- Desculpe, mas acho que isso não lhe dá o direito de ofender a Juliana - avançou Rafael, que entretanto se colocou ao lado dela.
- Não o vou desculpar, até porque nem sequer lhe dei autorização para me dirigir a palavra - respondeu, com azedume.
- Esta mulher é doida! - exclamou rapidamente, virando-se para Juliana.
Finalmente, Juliana conseguiu reagir àquela troca de palavras e pediu que ele a acompanhasse até à porta.
- Já me esquecia que afinal havia um terceiro motivo - comentou ironicamente, mais para si própria. - Rafael, não tens que assistir a este drama todo que a minha sogra faz questão de fazer. Peço-te que vás embora agora.
- Sim, tens razão. Não vale a pena perder a calma por causa desta senhora. Se precisares de alguma coisa, não hesites em me ligar, está bem?
Ele passou a mão pelo rosto dela, deslumbrado com a sua fragilidade. Costumava mostrar-se tão forte, decidida e independente...
Ela afastou-se, incomodada pelo acto carinhoso e bondoso dele.
- Se te perderes ao sair daqui, telefona-me, mas acho que não vai ser necessário se seguires as minhas instruções. Agora vai- te embora.
Entrou em casa e fechou a porta atrás de si. Moveu por várias vezes os ombros no sentido vertical, para tentar diminuir a tensão, mas só havia uma solução: respirar fundo e enfrentar o monstro que tinha na sala, com a mesma tenacidade com que enfrentava os colegas de trabalho e a vida.
Fim do primeiro capítulo
- Quer dizer... Os meus pais divorciaram-se quando eu tinha nove anos. Foi muito difícil e eu só me apercebi que as coisas estavam mesmo mal quando eles me falaram que se iam separar. Por um lado, acho que foi positivo as diferenças deles nunca terem interferido na minha rotina. Não passei pelo medo, pelo receio da separação. Aconteceu e pronto. Depois a adaptação foi muito difícil, mas já o ia ser de qualquer maneira e de qualquer maneira eu não ia aceitar... Mas acabei por superar tudo. A minha mãe foi um exemplo de mulher, ainda é um exemplo, como é evidente... Eu sei que tu também o és e tenho a certeza que o Dinis irá crescer bem.
- Também espero, mas tenho receio por ele. Tenho... - não se permitiu continuar e deixou que a interrupção da empregada Ana fosse suficiente para evitar mais uma declaração tão íntima. - Dinis, anda jantar.
Depois do simples repasto - arroz branco com legumes e frango grelhado -, sentaram-se no sofá, prosseguindo com um diálogo calmo, enquanto saboreavam o café.
- O Dinis anda num infantário?
- Sim. Um infantário caríssimo, pago pela minha sogra - ironizou.
- Ex-sogra - corrigiu ele.
- Sim, ex-sogra. Ela não queria que ele fosse para o infantário, mas eu queria. Por ela, ele ficava sempre ao cuidado da ama, mas eu queria que ele tivesse contacto com meninos da idade dele. Quando finalmente a convenci, a contrapartida foi ela escolher o infantário.
- Mas tens na mesma a ama...
- Sim - esclareceu. - A Ema vai buscar o Dinis ao infantário, porque nunca posso e fica com ele até eu chegar. Durante o dia, ela estuda, apesar da minha sogra tê-la como uma empregada normal. Mas eu quis dar-lhe a oportunidade dela ir para a faculdade...
- Mamã! - chamou o Dinis.
- Sim, amor. Anda cá, senta-te aqui no nosso meio.
- Ele é um amor! - elogiou o Rafael.
- Ele trata-me assim quando quer alguma coisa, não é, meu rei? Ou então quando está a ficar com sono...
- Não sejas má. Ele parece tão meigo.
- Eu sei e é muito meiguinho mesmo e como praticamente só nos temos um ao outro, somos muito chegados. Olha, já está a dormir...
Naquele preciso momento, a Ema entrou na sala.
- Precisas de alguma coisa? - perguntou ela.
- Por acaso, até preciso. Importas-te de me levar o Dinis para a cama? Depois, já podes ir embora.
- Claro - respondeu a empregada, mantendo-se sempre muito afável.
Acordou-o com cuidado e pegou-o pela mão, ajudando-o a levantar-se do colo de Juliana. Apesar de birrento, Dinis acompanhou-a, deixando-os a sós.
- Posso-te dizer uma coisa? - questionou Rafael.
- Claro.
- Prometes não te zangar comigo?
Ela sorriu.
- A verdade é que não te conheço muito bem e, apesar disso, gostava que me desse uma oportunidade, mas uma coisa te digo: podes ser rica, abastada, o que lhe quiseres chamar, mas esta casa não tem nada a ver contigo!
Juliana soltou uma gargalhada. Ele fazia-a sentir tão bem, tão descontraída. Era tão bom ouvinte. Era uma lufada de ar fresco na sua vida e, de facto, surpreendeu-a com o que disse. Voltou a rir-se, lembrando-se mais uma vez das palavras dele.
Ela tirara conclusões precipitadas pelo pouco que conhecia dele. Sabia que ele conseguia ser arrogante, cínico e ambicioso, mas parecia que o era somente na sua vida profissional. Porém, na sua vida pessoal, a ambição era um factor predominante. Não desistira dela, apesar de todas as rejeições que levara ao longo de meses, especialmente depois do incidente na discoteca.
- Eu não gosto desta casa, essa é que é a verdade, mas não tenho para onde ir.
- Ela é enorme e parece que ainda tem muito terreno à volta, que deve valer uma fortuna,
- Eu gostava de ter uma casa mais pequena, com dois quartos, com um pequeno pátio para o Dinis brincar. Isso já era suficiente para nós os dois. Mas a verdade é que é um risco enorme sair daqui e não posso vendê-la - admitiu - Esta casa pertence a mim e ao Dinis, mas não posso vendê-la.
- Não o podes ou não o queres fazer? - questionou-a, desculpando-se imediatamente a seguir pela insistência no assunto, depois de ver o desagrado e a tristeza no seu rosto.
- Não faz mal. Esta casa foi uma prenda de casamento dos meus sogros, ou seja, era deles. A verdade é que a minha sogra ameaça-me que se pensar sequer em sair daqui, tira-me o Dinis.
- O quê? Ela não pode fazer isso.
- Acredita que pode.
- E achas que ela conseguia?
- Por enquanto, não quero mesmo pensar nisso. Mas o certo é que ela tem mais condições financeiras e muitos conhecimentos, entendes? Não quero arriscar. Por enquanto, não quero mesmo arriscar. - Repetiu - Adio isto há quase cinco anos, desde que o Filipe morreu. Nunca sinto que é o momento certo de a enfrentar, porque o risco, como te disse, é demasiado elevado.
- E com isso colocas o teu bem-estar em causa?
- Não, não ponho. Sabes porquê? Porque a minha vida gira em torno do Dinis e do meu trabalho e enquanto isso correr bem, eu estou naturalmente bem.
- E não pensas sequer em querer mais para ti?