A conversa com a Beatriz já estava a ser adiada desde que ela chegara do Japão. Não gostava de me intrometer na vida dela, tal como não gostava que o fizessem comigo, mas uma sensação estranha no estômago perseguia-me, especialmente desde o episódio desta manhã.
Acho que também estivera tão absorvida pelo meu relacionamento com o Miguel, se se podia chamar assim, e com o meu trabalho, que descurei, como já era hábito, as minhas amigas. Mas ainda bem que não éramos todas iguais, senão nestes mais de quinze anos, não nos tínhamos mantido juntas.
Ouvi a porta do quarto da Beatriz abrir-se e esperei que ela viesse até à sala, onde eu me encontrava.
Apareceu na soleira da porta, com o cabelo castanho claro desgrenhado, os olhos envoltos por uma pesada cor escura e o que restava da maquilhagem numa pintura destruída.
- Desculpa se disse alguma coisa que não devia hoje de manhã - pronunciou, baixinho. Sentou-se ao meu lado no sofá e disse - Foi a bebida a falar ou algo mais... Não sei muito bem... Não quero que o Miguel pense que tenho alguma coisa contra ele... Até porque o que mais quero é que sejas feliz e ele parece-me bem diferente lá daquele outro. - A Beatriz recusava-se a pronunciar o nome do Márcio, considerando-o uma aberração.
- Não te preocupes com isso, Bia.
Ela gostava quando a tratava assim. Dizia que se sentia de volta à curta infância feliz, até à altura em que os pais se tinham separado.
- Mas quero que me contes o que se passa contigo. Sei que gostas de noitadas, mas todos os dias? Além de que nunca foste inconsciente ao ponto de não estares em condições para ir trabalhar. Bia, passou-se alguma coisa no Japão?
Acho que tinha tocado na ferida.
- Não quero falar sobre isso - respondeu, fingindo prestar atenção ao filme romântico que passava na televisão. Pareceu-me que de repente a sua mente processava cada momento do ou dos seus problemas.
- Não quero insistir no assunto, mas acabaste de confirmar que algo se passou.
Demorou uns minutos até a sua boca se abrir e me dar alguma informação.
- Jorge.
- O quê?!
- Chama-se Jorge Silva.
- Conheceste um português no Japão? Bem, isso deve ser raro, mas...
- Não. - mais um momento de silêncio. - Conheci-o na primeira viagem que fiz. - Falava, evitando olhar para mim, evitando que eu visse que as lágrimas estavam prestes a descer pelo rosto. - Na Alemanha. Trabalhamos para a mesma empresa. Ele era o responsável pelo grupo de formação naquelas duas semanas. O tempo livre era passado entre as quatro paredes do quarto dele ou do meu.
- E tu apaixonaste-te por ele...
- Não, quer dizer, pelo menos naquela altura não. Quando passei um mês na França, ele convidou-me para ir lá para casa dele, que é onde ele vive.
- Ele vive na França?
- Sim, foi para lá quando era pequeno... Bem, o certo é que nesse mês as coisas foram diferentes. Já não era só sexo, era algo mais.
- Para ele também?
- Sim - a sua voz estava segura do que acabara de afirmar. - Depois da despedida ter prometido que não era o fim da nossa relação, encontrámo-nos no Japão, onde estivemos a viver juntos durante aquele período de tempo. Claro, que sempre sem a empresa saber.
- O que se passou depois?
Naquele preciso instante, ela olhou para mim, o rosto ainda mais marcado pelo sofrimento do silêncio.
- No úlitmo mês, começamos a desentendermo-nos. A pressão para um de nós se resolver tornou-se insuportável. Ambos queremos estar juntos, mas nenhum de nós quer abdicar daquilo que tem.
- Oh, querida! - abracei-a contra o meu peito, ela começando a chorar compulsivamente. - Bia, olha para mim - Ela obedeceu - Nunca foste pessoa de te entregar assim, há que admiti-lo, mas agora que o fizeste, vais ser capaz de desistir assim tão facilmente? A tua carreira é assim tão importante que não possas lutar por aquilo que sentes?
- E ele, Ana? - perguntou, olhando para mim, o rosto numa mescla ainda maior de cores. - Porque tem que ser sempre a mulher a abdicar daquilo que quer? Mas, eu pedi transferência para França, mal cheguei cheguei a Portugal - admitiu - Mas foi imediatamente recusada... Eu não me consigo imaginar sem o Jorge, mas não me consigo imaginar sem o meu emprego. Não consigo despedir-me para ir ter com ele - falou.
Senti uma dor aguda no peito por ver a forte Beatriz, a bem disposta, a inteligente Beatriz reduzida a uma boneca de trapos, perdida nos meandros dos sentimentos, aos quais sempre fugira.