... e todos acabaram por ser coniventes comigo.
Tinha perdido as duas únicas pessoas importantes da minha vida e como tal só pensava no motivo de eles me terem deixado tão cedo (como se eu pudesse impedir isso!) e que eles eram insubstituíveis.
Sabia que isso me impedia de me relacionar com as pessoas. Até ali, até àquele momento em que vi o olhar dele repleto de preocupação, nunca me preocupara com isso. Demorara um ano e mais uma tentativa de suicídio para me aperceber de uma coisa tão simples. Não me podia afastar dele, amando-o tanto!
Talvez não fosse tarde demais para ele me perdoar por o querer abandonar... Compreendia bem essa sensação de abandono...
Terrível foi a forma como o meu avô morrera, mas pior fora a minha avó (pelo menos para mim), que optara por deixar de viver sem ele.
- Não a devias ter avisado! Porque o fizeste?
- Só tens duas pessoas na tua vida: eu e a tua mãe. Como fui eu que te encontrei naquele estado, avisei-a.
- Pois, mas fizeste mal de duas maneiras: não me deixaste morrer e telefonaste-lhe.
- Como podes dizer essas coisas? Estamos juntos há um ano e parece que não te conheço. Até a tua psiquiatra diz não compreender porque é que voltaste a tentar-te matar. Porquê?
- Não me apetece falar, João.
- Estás a ser tão covarde agora como foste ontem quando tomaste aqueles comprimidos todos.
O olhar dele estava repleto de sofrimento e de mágoa. Conseguiria eu continuar a ignorar o sofrimento dos outros em detrimento da minha dor?
- Volto a perguntar. O que está ela aqui a fazer?
- Ela é a tua mãe - respondeu ele.
- Ela não tem boca para me responder? - virei o meu olhar para ela, tentando fulminá-la com as poucas forças que tinha. - O que estás aqui a fazer? Desde os meus 9 anos que só te vi 2 vezes: no funeral dos avós e há dois anos quando estive no hospital.
- Eu impedi que morresses!
- Isso é para me fazer sentir melhor? Nunca estiveste presente na minha vida, não te quero agora.
- Luísa, não digas isso, eu preocupo-me contigo.
- Pois eu não me preocupo contigo nem com o que sentes. Não me sinto ressentida com o que fizeste, porque de certeza que os avós foram melhores pais do que tu alguma vez serias como mãe. Mas como nunca estiveste presente na minha vida, também não te quero agora. Faz o favor de sair.
Ela assim anuiu , parando momentaneamente na soleira da porta, olhando para mim e depois perdeu-se pelo corredor.
Não morri. Que contestação para ser feita, quando me sinto ladeada pela compaixão e crítica humana.
Ao abrir os meus olhos, qual espelho de realidade fingida, um nevoeiro assombrou-me. Estaria a ficar cega? Mais valia, para não ver rostos de consternação.
Fiquei calada. Estavam duas pessoas no meu quarto de hospital. Sim, era impossível não entender onde estava, não fosse aquele cheiro a amoníaco me irromper pelas narinas.
Quem me trouxera para ali? Quem me perpetuava para uma vida que eu não queria? Quem me arrancara de uma morte certa?
Sem querer, soltei um queixume quase silencioso e acordei-os da sistemática preocupação.
- Acordaste, meu amor! Deixaste-nos tão preocupados. - disse ele.
- O que ela está a fazer aqui? - perguntei, depois de vislumbrar um rosto tão familiar e ao mesmo tempo tão estranho.
Senti a minha mão presa. Estava deitada. Quente. Tal qual adormecera, assim acordara.
Mantive os olhos fechados, tentando somente apreender o que me rodeava. Ouvia os sons de conversas ao longe. Não entendia o que diziam. Um bip pausado, qual bater do coração, estava bem perto de mim. Onde estaria? No céu não era certamente. Sonhava com um lugar mais tranquilo...
Finalmente tomei coragem para abrir os meus olhos, com a cobardia que me era genuinamente conhecida.
Entendi tudo.