Gostava de chegar cedo ao meu trabalho. Tudo estava silencioso, tudo estava quieto.
Saboreava longamente o meu café encostada aos armários que se encontravam à janela.
Solidão... Prolongá-la até não mais poder... Era o meu maior prazer, o meu maior crime.
Aquele consultório, que outrora sentira o meu prazer em tratar dos meus pacientes, hoje assistia a um cada vez maior afastamento humano. A minha bata branca, a minha máscara, as minhas luvas. Apenas um bom motivo para me esconder... Momentaneamente a pele da dentista sobrepunha-se à pele sofrida.
Deixara praticamente de ser mulher, de ser pessoa para passar a ser um monte de órgãos, de ossos andantes. A minha alma continuava à janela, ansiando que alguém lhe mostrasse o caminho certo para viver ou morrer.
Cor. Vermelho. Flor. Rosa.
Que fazia ali uma flor tão delicada como aquela naquele consultório desprovido de sensações?
Abri os olhos lentamente. Mais um noite que passara, mais um dia para o qual acordava.
Levantei-me lentamente da cama e fui até à janela. Abri a persiana do quarto e fiquei a observar momentaneamente as pessoas que se apressavam a ir para os seus trabalhos, que levavam os filhos para a escola, que simplesmente gostavam de passear àquela hora...
Hesitante, preparei-me para ir para o consultório. Era dentista... Qual não era a ironia de ser formada numa especialidade médica que não salvava propriamente vidas... Refiro-me pelo menos àquelas que não consegui salvar, porque o mal delas era outro...
Os meus vizinhos conheciam a minha dor. Não fazia questão de a esconder. Era tão real para mim, que emanava sofrimento para os outros. Também deixara de me interessar pelo que os outros pensavam e quais os seus sentimentos.
Há dois anos, a melhor solução tinha sido fechar-me no meu casulo, isolar-me para não atingir ninguém com a minha revolta, com o meu ódio. Volvidos esses meses, esses dias, acomodei-me a essa situação e a minha melhor companhia era a minha solidão.