Marcou oito horas e foi pontual.
A Beatriz, única conhecedora da minha relação mais duradoura (quase um ano), não se coibiu de me dizer que a minha mente devia suplantar o coração, ou seja, entender que aquela saída era apenas isso e não uma relação cheia de mentiras e traições. Tão irónica que ela era... Eu acho que devia ser assim: cínica perante estas coisas, especialmente depois do meu envolvimento com o Márcio.
Mas a verdade era que depois de fantasiar tanto, era complicado perceber que agora era real, o Miguel estava em minha casa, à espera de me levar a jantar fora.
Depois de uma discreta indecisão entre uma camisola vermelha ou preta, optei pela primeira e saí do quarto, belo refúgio do mundo.
Apesar de ausentes elogios iniciais, à partida apenas por simpatia, o olhar dele mirou-me de alto a baixo.
- Onde me levas? - perguntei, já em viagem.
- Recomendaram-me um restaurante na Granja, provavelmente até já conheces, como és daqui de Gaia...
- Então, não és daqui, mas trabalhas cá.
- Certo, o meu irmão sempre viveu por cá e quando decidiu abrir uma empresa comigo optou por Gaia.
- Mas não vivias com ele?
- Ele é meu meio-irmão!
- Ah, certo, já me tinhas dito... Eu tenho uma irmã. Mas ela é de Bragança. Quer dizer, eu também sou... Vim estudar para o Porto e fiquei por aqui. Ela é casada, tem dois filhos e é mais nova que eu.
- Pareceu-me frustração na tua voz...
- Alguma. - Continuamos a conversa quando nos sentamos no tal restaurante, que de facto eu conhecia. - Acho que as coisas aqui são diferentes. Acho que há uma maior pressão para nos sairmos bem profissionalmente, do que propriamente criarmos uma família. Para a minha irmão, foi tudo praticamente fácil. A falta de ambição levou-a a permanecer em casa dos meus pais até casar e a trabalhar na florista que pertence à minha mãe. Ela casou-se com vinte e um anos e já tem dois filhos.
- Parece que lamentas coisas que fizeste ou então que não fizeste.
- Talvez...
- A minha mãe dizia-me com frequência que nunca se deve lamentar aquilo que se faz, senão ela não tinha tido a felicidade de me ter e não se deve lamentar aquilo que não se faz, porque assim vemos a vida passar-nos ao lado.
- Palavras sábias...
- A minha mãe sofreu muito e aprendeu muito com os seus erros. Quando conheceu o meu pai, segundo a minha mãe, ela apaixonou-se no mesmo instante e sem pensar nas consequências entregou-se a ele. Depois soube que ele era casado, mas ela já estava grávida... Bem, já temos aqui a nossa comida. Chega de falarmos de coisas desagradáveis!
Sábado e eu rebolava na cama, incapaz de me dar o descanso merecido depois de uma intensa semana de trabalho. Completamente desiludida pela expectativa que eu própria tinha criado, levantei-me e preparei o meu pequeno-almoço, enrolando-me de seguida num cobertor que vivia desde tempos imemoráveis no sofá. Entretive-me a ver televisão, sem dar conta das horas passarem, sem prestar atenção devida à Beatriz, que entrava e saía da sala, dissertando sobre as suas aventuras por terras nipónicas, até que... até que a campainha tocou, despertando-me da minha apatia.
- Ana, é para ti! - afirmou a B. - é um tal de Miguel.
- Miguel?! - fiz um ar pensativo e retorqui - Será o Miguel do café?
- Não sei, mas o teu leque de conhecimentos masculinos é diminuto, por isso a probabilidade é grande.
Segundos depois, abriu a porta e acompanhou-o até à sala, onde eu permanecia imóvel, tentando acalmar o coração, esse estúpido que só provocava ilusões, e o meu roso, que começava a ruborizar.
Mal o vi na soleira, levantei-me.
Mais uma vez, não foi necessário gastar o meu fluente vocabulário, ele falou por ambos...
- Olá! - cumprimentou. Manteve a distância, talvez por timidez, ou simplesmente por respeito à minha pessoa.
- Eu vou deixar-vos à vontade- Vou sair, Ana - falou a Beatriz. Comentário ignorado por nós...
- Desculpa aparecer assim em tua casa... Bem, eu queria desculpar-me por ontem - envolvido em tantos lamentos, o seu discurso foi ganhando confiança e centímetro a centímetro, foi-se aproximando de mim - Não correu conforme eu tinha esperado... Comecei a enrolar, a falar de trabalho... Pedi o teu contacto à tua tia e ela deu-mo juntamente com a tua morada. Decidi aparecer pessoalmente.
- Como é possível que ela tenha dado os meus dados a um estranho?!
- Para ela não sou um estranho.
- És sim - refutei, mas ele estava perto de mais, para eu poder me zangar...
- Frequento o café há mais tempo que tu. Tu nem há um ano lá vais... Eu vou lá há três anos.
- Não deixas de ser um estranho e eu a sobrinha!
- Vais continuar a bater na mesma tecla, ou podemos passar à fase seguinte?
- Fase seguinte?
- Sim, estava a pensar que podíamos ir jantar hoje. Uma espécie de segunda oportunidade. Aceitas?
O meu telemóvel tocou.
- Miguel, tenho que atender.
- Eu vou embora logo que digas que posso vir-te buscar logo.
Sorri e voltei a repetir.
- Tenho que atender.
- Até logo então.
Ouvi a porta bater e vi quem era que me ligava. Era a minha irmã. Talvez lhe retribuísse a chamada mais logo. Talvez....
Na entrada do meu apartamento, a Beatriz esperava sentada no chão, rodeada por mais malas do que aquelas que levara há três meses para o Japão. O jet-lag parecia que não afectava a sua constante boa-disposição, por vezes, irritante até.
- Pensei que a esta hora estivesses em casa - disse, depois dos abraços efusivos e carinhos sentidos.
- Pois...
- Não me digas que interrompi alguma coisa importante... Estavas com o tal jeitoso do café? Finalmente decidiste-te?
Depois de lhe contar o quão difícil foi trocarmos a primeira palavra e depois de lhe explicar o quão enfadonho ele parecia ser, troçou de mim.
- Bem, pelo menos vê pelo lado positivo: tentaste aproximar-te de um homem, em vez de fugir dele...
- Sim, sim...
Depois de surripiar os armários da cozinha para aconchegar o estômago, expressou vontade de se ir deitar:
- A conversa está muito agradável, mas continuamos amanhã, estou cansada.
- Espera, Ana!
Era o meu nome pronunciado. Aquele chamamento era para mim, vindo da parte dele.
- Olá! - disse, quando se aproximou de mim. Tinha largado o telemóvel e levantou-se apressadamente para impedir a minha fuga. - Posso-te convidar a ficares mais um pouco?
Apesar de já ter revisto esta situação na minha mente vezes sem conta, diria que estava surpresa, boquiaberta mesmo. Vazia de palavras, apenas abanei a cabeça afirmativamente e acompanhei-o até à mesa. De repente, todas as pessoas, todo aquele espaço se tinha reduzido a nós os dois e àquela mesa do canto.
- Desculpa esta bagunça, mas o trabalho persegue-me. Ou sou eu que o persigo... - disse, baixando o ecrã do computador portátil e empilhando os papéis de forma aleatória em cima de uma cadeira - Para onde quer que vá. há papelada a olhar para mim - continuou - Não é muito bom sinal, pois não?
- Pois... Acho que depende daquilo que fazemos e se gostamos realmente disso - lancei a típica frase de fazer conversa.
- Sim e gosto muito. Eu e o meu irmão - quer dizer, o meu meio-irmão - somos sócios de uma empresa de criação e gestão de sites entre outras coisas. Eu sou responsável por esta parte principal e ele trata das coisas comerciais.
- Parece interessante...
- A tua empresa tem site? Hoje em dia isso é fundamental.
- A minha empresa?! - soltei um ligeiro sorriso de ironia - Sim, a empresa onde trabalho já tem site. Teria de ter, até porque o seu mercado é 80 a 90 por cento internacional.
- Sabes que as pessoas - algumas pessoas - ainda ficam muito relutantes quando se fala desta situação. Mas caminhamos cada vez mais para uma sociedade virtual e cada vez mais somos individualistas, ou seja, se não for preciso sair de casa para comprar determinadas coisas, assim o faremos...
O meu telemóvel tocou. Fosse quem fosse, tinha-me salvo de uma palestra pró-tecnologia.
- Ana, estou de volta, amiga - disse-me a voz feminina do outro lado da linha, bastante efusiva.
Pedi-lhe desculpa pela interrupção, mesmo sem ter sido sincera, e levantei-me para falar com a Beatriz.
- Já estás em casa? Porque não me disseste nada? Tinha-te ido buscar ao aeroporto.
- Pois, não te queria incomodar, mas teve que ser. Quero entrar em casa, mas não sei onde pus as chaves...
- Já vais embora?
- Sim, tia. Olha, quero levar estes dois bolos - disse, colocando-me mesmo em frente à montra.
- Parece que sou adivinha. Já os tinha guardado para ti - fez uma pausa, enquanto os colocava na caixa. Entregou-ma e afirmou - Ele ontem perguntou por ti.
- Quem?
- Tu sabes quem. Ninguém aqui é cego. Perguntou se eu sabia porque não tinhas aparecido aqui nos últimos dias.
- E tu?
- Disse que provavelmente tinhas ficado a fazer horas extra no trabalho.
- Está bem. Fez mais alguma pergunta?
- Eu disse-lhe que trabalhavas aqui perto, mas não soube-lhe dizer exactamente aquilo que fazes...
- Vocês então estiveram a conversar.
- Foi mais um monólogo. Eu falei e ele ouviu.
- Só espero que não tenhas falado demais.
- Sobre o quê? Querida, as coisas que eu sei sobre ti: és minha sobrinha, vives com uma colega que passa mais tempo fora do que em casa, vens cá duas vezes por dia, porque trabalhas aqui perto e estás interessada no jeitoso, mas tímido, aqui do sítio. Será que há alguém que saiba mais alguma coisa sobre ti?
Não resisti e olhei para a mesa dele. O Desconhecido estava ao telemóvel, visivelmente compenetrado na conversa com a pessoa do outro lado da linha. Decidi dirigir-me para a porta de saída.
- Espera!