Sexta-feira, na maioria das vezes, era sinónimo de reuniões entre as chefias dos vários departamentos. Era necessário verificar a eficácia dos novos funcionários, os resultados dos restantes, se as alterações dos procedimentos (aka burocracias) estavam a ter valores positivos, o balanço final das encomendas, entre outras coisas.
Raramente sexta-feira terminava às cinco e meia da tarde. Efectivamente eram quase sete e eu ainda estava a braços com uma encomenda, que não tinha tecido suficiente para ser terminada, porque a responsável de compras esqueceu-se de comprar. Isto era inadmissível e acho que justificava o despedimento, não visse que o facto de ter uma nova pessoa ali implicava formação, o que nos fazia perder ainda mais tempo, numa altura em que as encomendas eram consideráveis.
Há mais de um ano atrás, quando aceitei o emprego, tinha consciência das enormes responsabilidades, porém não imaginei que fossem acompanhadas por tantas dores de cabeça...
Estacionei o meu carro perto do prédio onde morava. Ficou a poucos metros da entrada principal, suficientes para respirar fundo quando vislumbrei a presença do Miguel, sentado nos degraus.
- Não tínhamos nada combinado, pois não? - perguntei, sabendo de antemão a resposta.
- Não. Mas não te vi no café e vim até tua casa.
- Então esperaste muito. São quase oito horas!
Acabamos por dar ordem de produção à tal encomenda dentro das possibilidades da empresa, tendo a restante sido cancelada pelo cliente. Só esperava que não tivesse sido a última vez que ele nos tivesse contactado...
- Telefonei por duas vezes para o teu trabalho, até que desta última me disseram que tinhas acabado de sair.
- Está bem, então. Vamos subir e encomendar qualquer coisa para comer. Estou faminta. - afirmei.
Fui directa para a sala, onde larguei o casaco, a carteira de pele preta, tirei os sapatos de tacão e me refastelei no sofá, ignorando qualquer comentário até sentir que estava finalmente a ter o descanso merecido.
Ouvi uns murmúrios ao fundo como ingredientes a colocar numa pizza e voltei as minhas atenções para o meu amoroso gato, que roçava a sua cabeça no meu braço direito.
- Daqui a menos de meia hora, vêm-nos trazer a comida - disse o Miguel, depois de se sentar ao meu lado e começar a massajar as minhas costas. - Estás com ar cansado.
- É assim tão óbvio?! - disse, lacónica. A paciência para aturar declarações tão evidentes era diminuta. - Quando chegaste, tocaste à campainha?
- Toquei, mas ninguém respondeu. Porquê?
- Então, a Beatriz já não estava em casa - considerei, mais para mim, do que como contribuição para a conversa.
- Também imaginei que não. Ficaste com ar preocupado. Passa-se alguma coisa?
Encolhi os ombros e expressei um ar de indiferença, que não era verdadeiro.
Ao final da tarde de quinta-feira recebi uma mensagem por parte do Miguel, informando-me da reunião com um cliente que se tinha prolongado e portanto não nos íriamos encontrar. Nada mais. Sucinto e frio, pensei.
Tentei ignorar os meus pensamentos postos nele e decidi libertar toda a minha frustração numa ida ao ginásio, constantemente descurado. Estive uma hora numa actividade chamada 'fitboxe', que respondia exactamente às minhas necessidade. O banho foi refrescante para o corpo e para a mente.
Estava a tentar não analisar esta situação com o Miguel. Viver um dia de cada vez e depois logo se constataria o resultado deste envolvimento.
Lembro-me como tinha sido com o Márcio. Conhecemo-nos através de contactos em comum e não foi preciso muito tempo para encetarmos uma relação séria, mas secreta. Não entendia o porquê desta exigência, mas às vezes até sabia melhor. Porém, mais de seis meses para mim era suficiente para estes encobrimentos, para estas mentiras, especialmente a pessoas que já me acompanhavam há já alguns anos, como as primas Verónica e Beatriz. Prezava bastante a amizade delas para permitir que isto se prolongasse por mais tempo. Comecei a fazer uma ligeira pressão sobre o Márcio, resultando por vezes em indiferença ou pior em discussão. Quando finalmente ganhei coragem para o enfrentar, descobri o motivo do segredo. A dor perante a descoberta foi tal, que a Beatriz acabou por partilhar comigo esta situação, até hoje fechada a sete chaves nas nossas mentes.
Já não pensava muito no Márcio, apesar de não poder ignorar o facto de ele ter feito parte da minha vida e me ter enviado para o mundo da desconfiança, do medo das relações, do receio da entrega. Isso devia tudo a ele. Podia-lhe ser grata por me ter moldado deste forma.
Porém, o Miguel parecia ser diferente. Parecia...
O cansaço de me fechar naquela redoma de sofrimento tinha sido o impulso para ter tomado a iniciativa de me apresentar àquele desconhecido de olhos verdes. Mas... Na minha mente havia sempre um 'mas', sempre disposto a duvidar de tudo e de todos, excepto das minhas amigas.
Depois de saborearmos o café, sentados lado a lado timidamente no sofá, ajudou-me a arrumar as coisas para a cozinha. Fazia lembrar aqueles casais... Não, esquece, não fazia lembrar nada!
- Sabes quando foi a primeira vez que te vi? Foi em Setembro de 2007. - afirmou, encostado à parede.
- Mas ainda nem sequer trabalhava...
- Pois... Fiquei a pensar como se podia gostar de uma pessoa que nem sequer se conhece, especialmente porque não acredito em amor á primeira vista - confessou. - Mas passado um mês, ou algo do género, começaste a ir com frequência ao café da D. Celeste, tua tia, como descobri mais tarde.
- A sério?! - sentia-me encabulada por tal atenção e mantive-me virada para a banca, fingindo que lavava a louça.
- Quando finalmente tomei coragem de falar contigo, tive uns problemas familiares e comecei a hesitar até que desisti de me ir apresentar. Passado uns tempos, voltei a ter vontade de te conhecer, mas deixaste de aparecer no café. Pensei que estivesses assoberbada de trabalho, mas os boatos começaram a correr, até que confirmei com a tua tia que tinhas partido o pé.
- É verdade - acabei por me virar para ele - Foram semanas insuportáveis. A minha mãe queria que eu fosse para Bragança, imagina...
- Depois, pela segunda vez, duvidei se seria capaz de tomar a iniciativa e quando voltaste simplesmente consolei-me por te ver... Pensei que não quisesses nada comigo. Nunca me apercebi se retribuías o olhar...
O telemóvel dele tocou.
- Devias ter desligado isso, Miguel - falei, desagrada pela interrupção.
- Eu sei, desculpa. Venho já.
Voltei costas e concentração para a lavagem da louça, mas estava curiosa quanto à origem e assunto do telefonema. Mas passado poucos minutos, ele apareceu.
- Vou ter que ir embora, Ana.
- O quê?!
- Prometo - começou, enquanto se aproximava de mim - que será a última vez que seremos interrompidos por causa deste assunto. Isto não deveria ter acontecido - desabafou.
- Mas afinal o que se passa? - questionei, não pela curiosidade, mas pela preocupação no olhar dele.
- Eu depois conto-te melhor, mas o que se passa é que a minha mãe, a minha madrasta e os meus irmãos não se entendem quanto à herança que o meu pai deixou. Resumindo é isso. Hoje disse-lhes que não queria ser interrompido, mas estão tão cegos que já perderam o respeito por mim e por eles próprios.
- Vai com calma, Miguel - disse, estupefacta com a revelação. O pai dele devia ter falecido há pouco tempo...
- Não te preocupes - Deu-me um beijo na testa e foi embora.
Sentada no exíguo escritório partilhado por um colega, que trabalhava lá há pouco mais de três meses, vi as horas passarem e os problemas a acumularem-se em vez de se resolverem. A preciosidade de quando tudo corre bem é demasiado importante, especialmente por se tratar de um final de dia que se mostra ser essencial para um relacionamento, pautado por desencontros e interrupções.
- Fiquei surpreso por me convidares a jantar em tua casa.
- Mas não fiques. Saí tarde do trabalho e não deu para ir ao café.
- Está bem, Ana. Posso entrar?
- Claro. Queres uma cerveja? - perguntei, enquanto me dirigia para a cozinha.
- Eu vou buscar. Precisas que te ajude em alguma coisa?
- Não. Vou só tirar o bacalhau do forno e podemos ir para a mesa.
- Vou ver se és boa cozinheira!
- Não tenho tido razões de queixa - sorri para ele.
No pouco tempo que sobrou entre tomar banho, para dissipar toda a frustração de um dia com problemas e reuniões, preparar o jantar e dispensar a companhia da Beatriz, ainda pude colocar a louça guardada para ocasiões especiais e dois candelabros.
Era evidente que há dois dias queria ignorar qualquer sentimento em relação ao Miguel, mas o problema era mesmo esse: já havia sentimentos. Quais? Ainda estavam por decifrar.
- Velas apagadas?! Isso é que não. Tens aí um isqueiro? - perguntou-me à soleira da porta, enquanto me observava.
- Tens aqui nesta gaveta - indiquei.
- Precisas de ajuda? - perguntou novamente.
- Não. Vá vamos para a mesa.
Poucas palavras trocamos, enquanto saboreávamos a comida e um bom vinho branco.
- Estás aprovada! Agora já sei que não passo fome, porque com as minhas capacidades culinárias não vou longe. Frito um ovo e pouco mais...
- Eu dou-te umas lições - retorqui, levantando o copo para brindarmos.
- Prometes?!
Depois do espanto, venho o incómodo.
- Por acaso não atendo, não - respondi.
- Apenas as minhas ou em geral?
- Em geral, mas especificamente as tuas...
- Estás chateada comigo, não é? Isto é por causa de Domingo, certo? O meu irmão bem me disse que era o mais provável...
- Falaste de nós ao teu irmão?
- Vais dizer que não falaste com as tuas amigas...?
- Quer dizer...
- Estás acompanhada? Pelas tuas amigas...
Desviei o olhar para a sala, confirmando a constatação dele.
- Será que vai dar para falarmos?
A assertividade não era o meu forte, porém sentia que podia, talvez, estar a desperdiçar uma boa oportunidade de... me enganar e me magoar novamente, mas só assim se vive...
Depois da apresentação, a Verónica disse:
- Parece que já tens companhia melhor que nós. Só espero que não fiques agora tantos dias, como é costume teu, sem dares notícias!
- Já chega, Verónica, já deste sermões que cheguem à rapariga por hoje - defendeu a Sónia.
Ouvi a porta bater e sem saber exactamente como reagir à presença do Miguel, peguei nas chávenas, que ainda continham vestígios de chá, coloquei-as no tabuleiro e comecei a dirigir-me para a cozinha.
- Queres beber alguma coisa? Ainda devo ter aí algum chá.
- Por mais que possa gostar de chá, quero mesmo é que pares para podermos conversar.
- Está bem. Fala então.
- Não precisas ser tão fria, Ana. Ontem, não me apercebi que realmente pudesses estar chateada comigo por não te ter telefonado...
- Mas não fiquei - respondi, pegando novamente no tabuleiro que tinha pousado em cima da mesa da cozinha e levei-o para a banca. - Passamos uma boa noite juntos, nada mais.
- Para ti significou tão pouco?
- O que queres que te diga? - retorqui, virando-me para ele. - Tu não precisas de te chatear muito por uma mulher, Miguel. Uns dias antes de nos conhecermos, encontraste-te com duas mulheres, DUAS! Ontem mesmo, uma delas apareceu-me à tua procura! Porque é que estás tão preocupada se estou chateada ou não?
- Eram as minhas irmãs, tonta! - falou, soltando uma pequena gargalhada. Aproximou-se de mim e acariciou-me a cara.
Senti-me envergonhada e incapaz de continuar aquela conversa.
- Já é tarde, Miguel, é melhor ires embora.
- É, talvez tenhas razão. Podemos falar amanhã no café ou aqui em tua casa.
- Sim, pode ser.
Saiu, sem tentar me beijar, antecipando sem duvida a desconforto que eu sentira depois de tal afirmação...