Mas para mim não havia nada para falar. Divertimo-nos um com o outro, nas diversas formas que um homem e uma mulher se podem dar e não havia nada para além disso.
Amanhã era outro dia sim. No entanto, era momento para seguir, voltar à solidão habitual. Um passo tinha sido dado: depois da traição do Márcio, há quase dois anos, finalmente saí com um homem. A Beatriz tinha razão...
Felizmente o dia seguinte foi bastante atarefado no trabalho, de forma a que quase não gozei a minha hora de almoço e impediu o meu regozijo de sair por volta das cinco e meia da tarde. Portanto, não pude gozar a cara do Miguel de espanto, quando eu o rejeitasse com todas as letras...
Fui directa para casa, onde um jantar requentado me esperava no microondas, onde o meu gato ronronava por atenção e onde a minha amiga e companheira de apartamento me trocara por um homem mais novo, que tinha conhecido na sua saída de sábado à noite.
A casa estava por minha conta e a única coisa que me apetecia era enfiar o meu corpo por debaixo dos lençóis e cobertores e afogar as minhas mágoas antigas e recentes num saboroso gelado de chocolate...
Mas a campainha tocou.
- Então, não sabes atender o telemóvel? Quantas chamadas é preciso fazer para atenderes?
- Desculpa, não dei conta...
- Telefonei à Beatriz e ela contou-me o que se tem passado. Temos que saber sempre tudo por ela? Nunca contas nada.
- Vocês são é coscuvilheiras.
- Ana - pronunciou o meu nome com indignação - Não somos tuas amigas? Há quanto tempo nos conhecemos?
- Eu sei, Verónica... - Mal sabia ela o segredo que escondia de todas elas - Entrem, os vizinhos não precisam de saber também.
Ofereci-lhes um chá, com aroma de maçã e canela, e encetamos uma amena cavaqueira, actualizando-as da minha situação, a V. contando-me sobre o seu namorado novo e a Sónia explicando-me porque se tinha chateado com o Pedro, o seu noivo. Por seu turno, a Inês dissertou sobre o quanto era especial o seu marido, após quatro anos de casamento e seis de namoro.
- Sim, querida, isso já não é novidade para nós. Também conhecemos o Nuno. Sabemos como ele é - retorquiu a Verónica.
- Não sejas má - disse eu - Ela está a tentar mostrar-nos que é possível termos e mantermos uma relação estável com uma pessoa do sexo oposto.
- Mas quem falou em relações? O importante é usarmos e abusarmos deles e depois deitá-los fora, tal qual eles fazem muitas vezes.
- Pareces a Beatriz a falar, Verónica!
- Pois... mas é a mais pura verdade - respondeu - A campainha tocou, Ana, estás à espera de alguém?
- Não, mas vocês também apareceram sem avisar e estamos aqui.
Levantei-me e fiquei surpreendida pela pessoa que se apresentou à minha frente.
- Estou há horas a tentar falar contigo. Não atendes o telefone?
'Outra vez não', pensei!
Entrei no café da minha tia, ao final da tarde de segunda-feira, calma. Tinha passado o domingo à espera de uma chamada que nunca chegou a acontecer e como consequência comecei com a velha tendência de fazer conjecturas precipitadas. Mas as palavras da Beatriz, a dada altura, começaram a produzir efeito como um analgésico e a possível dor que pudesse sentir acabou por ser aniquilada.
Sentei-me, como habitualmente, na minha mesa do canto, saboreando o meu café curto e folheando o jornal.
A minha tia, metediça como sempre, quando me veio servir o café, ainda me questionou sobre o Miguel, mas a minha recusa em tocar no assunto ficou evidente pela inexpressividade do meu rosto.
Estava a ler as notícias da primeira página, depois de ter espreitado o final do jornal, quando o Miguel surgiu perante mim. Sentou-se e começou a discursar:
- Olá, Ana. Olha, só passei aqui para te ver, mas não posso ficar muito tempo. Estou com um projecto recente, em que o cliente exige ver uma apresentação da página amanhã de manhã. Por isso vou trabalhar até às tantas...
- Não há problema - respondi, evitando propositadamente olhar para ele.
- Não te telefonei ontem, desculpa, mas tive uns problemas familiares...
- Não precisas de te explicar.
- Ainda bem que pensas assim. - Levantou-se da cadeira, deu-me um ligeiro beijo, ao qual correspondi contrariada e disse: - Amanhã, falámos melhor.
A conversa prolongou-se dentro do carro, vendo as ondas aconchegarem-se na areia.
Regressámos a minha casa por volta das duas da manhã.
- Acompanho-te até à porta.
Ambos sabíamos o resultado final daquele encontro.
Enquanto procurava as chaves na minha carteira, o Miguel aproximou-se. Levantou-me o queixo e acariciou-me a face, para em seguida encostar os seus lábios nos meus. O beijo tornou-se intenso e quando demos por isso, eu estava contra a parede gélida do prédio.
- Queres subir?
Ele sorriu e seguiu-me, qual cão no cio.
A atracção tornou-se tão forte, que começamos a tirar a roupa ainda no corredor, enquanto eu tentava levar-nos para o quarto, que há muito tempo não presenciava tal actividade.
Atingimos o clímax praticamente ao mesmo tempo e, sem delongas, deitámo-nos, sorrimos e depois aconchegámos o corpo um no outro, deixámo-nos adormecer...
Acordei com um ligeiro barulho, que supus ser da fivela do cinto dele.
- Já vais? - perguntei.
- Sim. - Acabou de abotoar a camisa, deu-me um beijo carinhoso na boca e disse - Mais logo telefono-te.
Depois do repasto, fomos até à praia, que ficava a escassos metros de onde nos encontrávamos.
As estrelas apareciam timidamente por entre algumas nuvens que deambulavam na noite, com um ligeiro vento a soprar como companhia.
Passeámos pelo passadiço de ripas de madeira, sentindo a aragem gélida entre a pele e os ossos.
- Gostei da tua ideia, mas está frio - comentei.
- Queres ir embora?
- Não, não é isso. Só me estou a queixar... Esquece!
- Acho que tenho um casaco a mais no carro. Vou buscá-lo.
Estávamos ainda perto do estacionamento, por isso não demorou muito para que começasse a sentir o meu corpo mais quente.
- Estás melhor?
- Sim, obrigado. Estavas a dizer-me que te dás bem com o teu irmão. Eu acho que deve ser complicado trabalhar com familiares. No pouco tempo que ajudei a minha mãe, desentendi-me por várias vezes com a minha irmã...
- Nós os dois somos diferentes, mas isso não pode nem deve interferir no trabalho. Não quer dizer que de vez em quando isso não aconteça, não é...? Ia-te perguntar o que tu fazes, já que a tua tia não conseguiu explicar-me, mas não quero falar mais de trabalho. Costumas ir a Bragança?
- Não. - Era a verdade. Detestava fazer a viagem e egoísta, preferia que fossem os meus pais a visitarem-me - Vou apenas em algumas épocas festivas, nas férias vou para um sítio bem distante de lá...
- Porquê? Já percebi que tens uma relação... como hei-de dizer... complicada com a tua irmã, mas e com os teus pais?
- Dou-me bem com eles, mas prefiro trocar com eles um telefonema do que uma visita pessoal. Não é por nada, acho que simplesmente me habituei a viver sozinha, a fazer o que quero, sem ter aquelas preocupações sufocantes em cima de mim... - respondi.
- Imagino que seja também por isso que não vais lá mais vezes... - disse, olhando para mim.
Desviei o olhar dele e falei:
- Preferia mudar de assunto, se não te importas. - Ora aí estava algo que optava por não dissecar: anos de discussões, ciúmes e acusações entre mim e a Tânia, a maninha mais nova.
- Acho que é difícil entre raparigas. As minhas irmãs, mais uma vez, meias-irmãs...
- Surpreendes-me de cada vez que falas na tua família!
- Pois... Elas também não se davam. Agora está melhor, mas volta e meia discutem...
- Tens de me dizer que família não tem os seus problemas...