A noite já tinha chegado e as temperaturas de Fevereiro ainda não eram assim tão amenas para usar a roupa que tinha no corpo, mas infelizmente tinha deixado o casaco no carro e tão cedo não me deixavam entrar em casa.
Depois das minhas palavras mais que cruéis, apesar de realistas, a minha mãe e restante companhia, escandalizada e magoada, ordenou ao Ricardo que me levasse até às traseiras, para o grande pátio.
- Subitamente o teu ar superior transformou-se em cansaço. Atreveria-me a dizer numa certa tristeza mesmo.
- Porque é que dizes isso? - perguntei, esfregando os braços com as minhas mãos, para atenuar o frio.
- Ora, entraste como se a pessoa que morreu te fosse estranha, depois embateste com a tua mãe e comigo daquela maneira... - retorquiu, despindo o seu blazer azul escuro e colocando-mo por cima dos ombros - Uma pessoa não é assim tão fria... Depois as mazelas notam-se todas no rosto... - ironizou.
- Pois. As más recordações fazem mal à pele!
- Espero que nem todas tenham sido más - falou, afastando-se ligeiramente, encostando-se à mesa de madeira, olhando fixamente para mim.
- Não, Ricardo, não foram. Talvez as consequências tenham sido más, não sei... O certo é que me sentia bem longe desta casa - admiti.
- E de mim...- lançou, dando agora um passo na minha direcção, permitindo que os nossos corpos quase se colassem.
- Isso é outra história - disse, deixando que ele se mantivesse ali tão perto de mim, os olhos castanhos-esverdeados fazendo lembrar o passado.
- Que preferes nem tocar no assunto.
- Pára de tentar terminar as minhas frases - afastei-o suavemente. - Só acho que não é o momento ideal para conversarmos sobre o que se passou.
- Especialmente porque já foi há muito tempo.
- Pára - refilei, deixando sair um pequeno sorriso - Foi há muito tempo, mas não me esqueci. Disso podes ter a certeza.
O Ricardo mirou o interior, de onde se vislumbrava a sala.
- As pessoas estão a começar a ir embora e eu também vou. A minha mãe deve ficar por aqui com a tua, mas o meu irmão já deve ter chegado da faculdade e como não vem aqui fazer nada, vou-lhe fazer companhia. Posso dar-te um conselho? - Anui e ele prosseguiu - Por mais desavenças que tenhas tido com o teu pai - e eu soube de algumas - tenta respeitar aquilo que a tua mãe sentia por ele e a dor que ela sente ao perder o homem com quem esteve casada mais de trinta anos. Contém a tua raiva e prepara-te para um dia ainda mais difícil.
Agora estava fechada naquele que outrora fora o meu quarto, depois do Ricardo me ter acompanhado até ao início das escadas para o segundo piso e me ter entregue a pequena mala de viagem. Aconselhara-me a não aparecer à frente da minha mãe, para não a perturbar mais e tomar um bom duche para me deitar depois.
Repentinamente sentia-me de novo uma criança.