A manhã decorreu com os berros histéricos da minha mãe ao acordar na sua cama vazia e prolongaram-se com a constatação real dos factos: estava viúva. Estava sem aquele homem que sempre fizera parte da sua vida, estava sem aquele homem que lhe dera uma filha, estava sem aquele homem que não permitia que a sua vida entrasse em rotina, fosse pelos seus momentos de extrema felicidade fosse pelos seus momentos alienados, em que... Era difícil recordar isso.
O almoço foi feito em silêncio. Eu, a minha mãe, a Noémia, o marido dela, o Abílio, e o irmão do Ricardo, o Renato. Eram agora a família da dona Lurdes. Sim, porque desde que eu me afastara - se é que essa palavra seria adequada - deixara de fazer parte desse núcleo.
Sentia-me portanto só naquele espectáculo triste, com demasiados participantes. A dado momento, dei por mim a ansiar ver o único rosto, que por mais que não aceitasse as minhas atitudes, pelo menos compreendi-as.
O Ricardo tinha sido, desde que me recordava, o meu único ombro amigo, o meu confidente, o meu parceiro nas diabruras, mas ele também era o motivo (ou um dos) pelo qual o meu pai achava que me devia castigar.
Foi, portanto, confuso, para mim, quando ele me disse que o senhor Bernardino o tinha ajudado a ultrapassar diversos obstáculos nos últimos tempos. Talvez tivesse sido a sua forma patética de se redimir, quem sabe...
- Ainda bem que já chegaste. Parece que mal consigo respirar aqui dentro, afirmei, pousando a mão direita no meu pescoço.
Estava sentada numa cadeira, longe de todos, tentando-me abstrair daquela situação, mas sem grande sucesso.
Depois de ter dado mais uma vez as devidas condolências à minha mãe e olhado com demora para o cadáver, veio ter comigo.
- Queres ir até lá fora? - perguntou com os olhos visivelmente preocupados.
- Não me sinto com forças para enfrentar isto, Ricardo. Cada vez, as lembranças são maiores e eu...
- Anda! - Pegou na minha mão e conduziu-me até à mesa de jardim, que se encontrava a um metro da piscina, em cima da erva verdejante. - Já comeste?
- Almocei, mas sinceramente não consigo engolir seja o que for... - respondi, enquanto nos sentávamos no banco com um metro de comprimento.
- Acho que já não consegues fingir mais que a morte do teu pai não te afectou em nada... Olha, - falou, cuidadosamente, depois de colocar a mão dele sobre a minha - eu sei que sofreste muito...
- Sabes que não te contava tudo, não sabes?
Encolheu os ombros e prosseguiu:
- Ele não deixava de ser o teu pai e isso é algo difícil de esquecer. Façam o que fizerem, temos sempre essa ligação com eles.
- Não sei - desabafei, deixando cair uma lágrima - Sabes que é demasiado doloroso pensar que às vezes travamos guerras sem sentido quando a vida é tão curta e a morta certa. Perde-se tempo com brigas insignificantes para depois ficarmos apenas com um vazio cá dentro.
- Já não estás a falar só da tua relação com o teu pai...
- Não... - esbocei um pequeno sorriso irónico - Sabes que fui casada...
- Que és casada - corrigiu ele.