Mais de dois meses se passaram desde a última vez que o vira.
No dia seguinte, Domingo, foi a penúltima vez que vira os meus pais. O meu humor negro atingiu níveis elevados, sentindo-me capaz de tecer a maior crueldade ao mais pequeno e inocente ser humano.
Voltara a ter vontade de me vingar de todos pela minha infelicidade, pela minha falta de confiança nas pessoas, como ele tinha dito, pela minha incapacidade de analisar caracteres.
Definitivamente, o Miguel era diferente daquele homem, daquele único homem com quem eu tivera um relacionamento sério. Mas foi tarde demais quando me apercebi, porque ele já tinha fechado a porta da minha casa e do seu coração.
Segunda-feira tinha sido um dia bastante negativo. Não conseguira arranjar concentração suficiente para fazer o meu trabalho e fui chamada à atenção, por duas vezes, pelo meu subalterno directo. Era, para mim, inadmissível ter este comportamento. Sempre me julgara suficientemente forte para separar as coisas. Contudo, não conseguia combater o sentimento de injustiça e impotência.
Tentei seguir a minha rotina como se nada se tivesse passado na semana anterior. Sentei-me na minha mesa habitual, bebi o meu café curto e folheei o jornal, pela segunda vez nesse dia.
Mas, qual lâmina espetada nas costas, ele fez exactamente o mesmo à minha frente. Sentou-se na sua mesa habitual, acompanhado pela papelada e o computador portátil, que já lhe eram tão característicos, e pediu uma cerveja.
Não fui capaz de permanecer impávida e serena perante aquela cena. Ele tinha-me ignorado... Mas acho que não o devia recriminar por isso. Eu tinha consciência de que a culpa tinha sido minha.
Em vez de demorar pouco mais do que dez minutos a chegar casa, demorei quase trinta.
Revia constantemente a mesa com cinco pessoas estranhas, mais um meramente conhecido. Não devia ter dado asas à minha imaginação, às minhas necessidades de sentir um pouco de amor e afecto masculino.
Decidi mergulhar a minha dor na profundidade de um uísque de quinze anos, que mantinha em cima do pequeno móvel da sala como bar.
Descalça, de copo na mão, abri a porta do meu apartamento, sem a preocupação de reparar quem me procurava.
- O que estás a fazer aqui? - berrei, ao vê-lo entrar furiosamente pela sala.
Fechei a porta e segui-o.
- Vim aqui só para te dizer uma coisa.
- Não preciso...
- Pois não, Ana, tu não precisas de nada, nem de ninguém. Pareces ser auto-suficiente - gritou. Esperou uns meros segundos e recomeçou o ataque, agora mais calmo, mais mordaz, mais sarcástico - Tens um grave problema, Ana. Tens problemas de confiança, querida. Eu não tinha motivos e continuo a não tê-los para te mentir, especialmente depois de te ter dito que te amava. Sim, em menos de uma semana apaixonei-me por ti. Só que TU é que te mostraste ser uma pessoa diferente. Parecias ser uma pessoa calma, com o dom de não tirar conclusões precipitadas, ou pelo menos com a capacidade de dar uma segunda oportunidade da pessoa que acabou de meter o pé na poça, de se explicar. Só que hoje, querida, - baixou consideravelmente o tom de voz, aproximou-se de mim e apontou-me o dedo indicador esquerdo à cara - não fiz nada de errado. Jantei com a minha mãe, ela apresentou-me, naquele mesmo café, o seu novo namorado, que conheceu nas danças de salão. Estivemos um pedaço na conversa, até que entretanto apareceu o meu irmão, com a namorada e mais uns amigos. Quando tu chegaste, a minha mãe tinha acabado de sair. Espero que estejas bem satisfeita por teres conseguido afastar uma pessoa que te amava de verdade.
Desviou-se de mim e saiu da minha casa.
Subitamente o murmúrio das conversas paralelas parou. O eco do meu gesto espalhou-se pelo espaço e inevitavelmente a curiosidade sobre o que se passava ali lançou-se sobre nós.
Sentia o meu corpo ser invadido por uma onda de choques electrizantes, que alimentavam naquele preciso momento a minha raiva.
Alguém me chamou à atenção, tocando-me no braço direito.
- Acho que este não é o melhor sítio para vocês discutirem - falou o Nuno.
- Sim, tens razão. - conclui.
Mas isso não interrompeu a minha ansiedade de o atacar.
Vesti o meu casaco preto e precipitei-me para a saída, sabendo que ele me acompanhava num passo mais lento.
- Mas tu pensas que sou idiota? Tenho escrita a palavra 'idiota' na testa para poderes mentir-me assim? - gritei.
- Mas não te menti - bradou ele.
- E esperas que acredite na tua palavra, depois de me teres dito que ias estar com a tua querida mamã, mas afinal encontro-te aqui com os teus amigos?
- Espero, sim - admitiu, aproximando-se de mim, tocando-me nos meus ombros.
- Larga-me. Não admito sequer que me toques.
- Foda-se. Mas estás a brincar comigo? - questionou, perdendo as estribeiras - Não significou nada para ti o que aconteceu esta manhã?
- NADA! - uma pequena mentira, disse para mim. - E não mudes de assunto, porque o que está em causa não foi o facto de termos passado a noite juntos, mas sim o facto de me mentires.
- Porra, já te disse que não te menti. Eu estive com a minha mãe, Ana.
- Pára de mentir, Miguel, estou farta de mentiras. Tu, o Márcio... Vocês são todos iguais! Uns mentirosos!
Irrompi pelo estabelecimento adentro, deixando-o só na rua, ao frio, sob a fraca luz da lua, que iluminara as minhas palavras amargas.
Peguei na minha carteira de pele vermelha, que se encontrava pendurada sobre as costas da cadeira e fiz o percurso inverso, ignorando a presença dele já no interior do café e dirigi-me até ao meu carro, que estava a escassos metros dali, numa rua transversal.
Desvendados os segredos, eu e a Beatriz decidimos convidar os nossos amigos mais próximos para um jantar lá em casa: a Sónia e o Pedro, a Inês e o Nuno e a eterna solteirona Verónica.
Apesar dos desentendimentos com a prima por diversos motivos, especialmente familiares, a Beatriz estava disposta a fazer uma pausa na sua rebelião contra a Verónica. Por mim e pela sua nova fase conturbada, chamada amor.
Optamos por um prato tipicamente portuense - a francesinha - bastante apreciada por todos e fiz o meu molho especial, que tinha aprendido com um aspirante a cozinheiro nos meus tempos da faculdade e que ao longo dos tempos fui aperfeiçoando ao meu gosto. Acompanhadas por excessivas doses de batatas fritas e cerveja fresca, o repasto foi um momento com enorme intensidade por todos, visto serem escassas as vezes que agora nos reuníamos assim.
No fim da refeição, em vez de nos dedicarmos à viciante jogatina das cartas ou de qualquer outro tipo de diversão, a Verónica propôs outra ideia:
- Meninas - não querendo ofender ninguém, - disse em tom de gozo - apesar da noite estar fria, que tal irmos até à praia beber um café?
- Cá para mim, Verónica, tens alguém de olho para aqueles lados. Não, espera, combinaste com algum homem mais novo lá? - insinuou a Sónia, enquanto acariciava a cabeça do meu gato, distraidamente, sentada no sofá.
- Não sejas cruel comigo. Oh, meu Deus! - dramatizou, levando as mãos à sua vasta cabeleira negra. - Não posso simplesmente querer estar com os meus amigos num local agradável, sem me apelidarem injustamente de promíscua?
- Bem - disse eu, levantando-me da cadeira, que fazia parte do conjunto da mesa de jantar - independentemente dos motivos da Verónica, acho boa ideia.
- Hoje não vais estar com aquele homem lindo de olhos verdes que vimos da outra vez? - perguntou a Verónica.
Mais uma vez eram elas que precisavam de me questionar. Tinha aprendido a guardar as coisas para mim e apesar de nos conhecermos há tanto tempo, eu não mudara. Não era uma questão de falta de confiança, simplesmente não escancarava a porta dos meus sentimentos naturalmente.
- Encontrei-o hoje de manhã em trajes diminutos aqui pelo corredor - lançou a Beatriz.
- O quê?! - retorquiu a V., colocando o braço em cima dos meus ombros, enquanto nos preparávamos para sair para o corredor do prédio - Isso já está assim tão avançado? Ele já passou aqui a noite? Troca-me isso por miúdos, querida. Quero saber todos os pormenores.
O bar ficava do lado oposto à Praia de Salgueiros e estava entre os muitos que se tinham estabelecido ali naquela zona. Não havia muitas pessoas na rua. A maioria tinha-se abrigado dentro dos cafés, devido às baixas temperaturas daquele Novembro. Nós dirigimo-nos ao Capitania Bar, local habitual quando íamos para ali.
A música normalmente estava num nível elevado, mas não era impeditivo para um diálogo entre as pessoas que optavam por aquele espaço; a luz, em vários tons azuis, era média, dando ao ambiente um aspecto sereno.
Vi-o mal entrei.