- Por onde começar? - questionei-me em voz alta. Sentei-me no outro sofá, que se encontrava ao lado do primeiro, perpendicularmente. - Eu não fui capaz de te dizer o que tinha feito. Os últimos dois anos para mim foram muito complicados, Ricardo. Eu fiquei a estudar no Porto, tu foste para Guimarães... Eu sei que prometemos...
- Que continuaríamos a nossa relação mesmo com a distância - terminou ele.
- Sim... - anui. - Mas não fui capaz de o fazer, não depois de ter visto o olhar de regozijo do meu pai quando soube disso. Sabia que ele nunca nos iria deixar em paz e eu não queria que continuasses a sofrer com isso.
- Por isso, logo no primeiro fim-de-semana que vim para casa, tu passaste por mim e ignoraste-me. Por isso, é que nem atendias quando eu te telefonava - constatou.
- Ricardo, o meu pai já não nos deixava ver mesmo quando estavas cá, tinha que ser sempre ás escondidas, agora sabendo quando vinhas, o controlo era ainda maior. Eu não aguentava mais.
- Pois, mas podias ter pedido a minha opinião.
- Foi melhor assim.Acredita, Ricardo. - retorqui, desviando o olhar. - Por essa altura, tomei uma decisão: tinha que arranjar forma de sair daquela casa. Arranjei trabalho sem ele saber. O meu pai confiava em mim, quando eu dizia que ia para a faculdade ou que tinha que ir para algum sítio por causa de algum trabalho da faculdade. Depois de mais de um ano a trabalhar, pedi transferência para Lisboa. Trezentos quilómetros a separar-nos era o ideal´.
- Mas porque é que roubaste ao teu pai? - questionou-me, intencionalmente o peso da acusação.
- Foi necessário - Afirmei friamente. Ergui a cabeça numa demonstração inútil de aceitar aquela decisão como a única saída. - Fiquei com o dinheiro de duas prestações de propinas. Para todos os efeitos não ia à faculdade e não... Usei esse dinheiro e mais algum que tinha para pagar a renda de um pequeno apartamento que aluguei, sem mesmo o ter visto, e para outras despesas. Depois foi sair daquela casa e mentalmente despedir-me de todos.
- Mas não foi o que fizeste comigo. - respondeu, sentando-se agora ao meu lado.
- Tu não eras qualquer um, Ricardo, e sabes perfeitamente disso. Por tudo o que tínhamos vivido, por tudo o que tínhamos dito um ao outro, por tudo o que sentíamos, não fui capaz de ir embora sem te dizer nada.
- Mas mais uma vez foste cobarde. Fugiste dos teus pais e fugiste de mim - concluiu.
- Ricardo, se eu tivesse ido falar contigo pessoalmente, de certeza que me irias tentar mostrar que aquela atitude não era a melhor e eu já planeava a minha fuga há tanto tempo... Por outro lado, não sabia se querias falar comigo. Acabei tudo entre nós sem nenhuma satisfação.
- Mas conhecias-me melhor do que ninguém. Nunca seria capaz de fechar a porta.
- Talvez... - levantei-me no intuito de me afastar dele e de todas as recordações que aquela conversa me trazia - Isso já faz muito tempo. Já não podemos apagar o passado.
- Mas parece que tu queres apagar tudo o que sentimos - acusou, levantando-se também.
- Sentíamos - corrigi.
- Vais-me dizer que se eu te beijar aqui e agora, vais resistir'
Nem me deu tempo sequer para pensar nas suas palavras. Dirigiu-se imediatamente a mim e com uma mão puxou-me pela nuca e beijou-me intensamente.
Como evitar não corresponder? Era o meu primeiro amor....
- O quê? Não podes estar a falar a sério, Diana. Tu não me podes mandar embora da minha casa.
- Se fosses bem-educado, Tiago, nem precisava de te responder que esta casa já não é tua e que eu te pedi educadamente para saíres - retorqui, calmamente, apesar de estar a sentir-me incomodada com aquela contínua demonstração de posse.
O Tiago encontrava-se agora de costas para o Ricardo, enfrentando-me, o seu rosto irado, capaz de cometer uma loucura. Deixara há muito tempo de me intimidar com esse tipo de coisas. Depois de passar pelo que passei, tornara-me um pouco mais forte.
Agarrei-o pela mão e encaminhei-o até à saída.
- Depois telefono-te, Tiago.
- Ainda hoje?
- Porra, Tiago, pára com isso - respondi exasperada, mas quase num sussurro. - Sabes perfeitamente que acabou tudo entre nós. Não nos entendíamos enquanto estávamos casados, achas que agora seria melhor?
- Talvez não. Mas isso não implica que não continue a tentar alguma coisa. Sabes perfeitamente que gosto de ti.
- Tudo bem, Tiago, mas este não é o momento mais adequado para isto. Fazemos o seguinte: durante a próxima semana combinámos qualquer coisa e se der, voltamos a falar sobre isto, pode ser? Mas agora tens mesmo que te ir embora.
Talvez estivesse a dar-lhe falsas esperanças ou talvez não.
Agora que pensava que começava uma nova fase na minha vida, o Ricardo reaparecia para complicar as coisas. Ele tinha sido a pessoas mais importante para mim, desde sempre o fora, por isso talvez tenha sido tão difícil tomar a decisão de o deixar nos dois anos antes da minha fuga...
Regressei à sala, onde o Ricardo perscrutava os meus objectos de decoração em cima da mobília. Eram coisas fúteis, acompanhadas por fotografias de amigos que deixara em Lisboa e outras ainda apenas comigo e com o Tiago. Ainda não tivera força suficiente para fechar esse capítulo, apesar do Tiago já não viver ali e o divórcio realmente estar quase finalizado.
- Como é que descobriste onde eu morava? - perguntei na soleira da porta.
Ele olhou-me surpreendido, como um menino que tinha acabado de ser descoberto a fazer algo que não devia.
- Estivemos a arrumar umas coisas no escritório do teu pai e ele tinha lá a morada da tua loja e aqui da tua casa. Como não me deixaste nenhum número e voltaste a fugir pela segunda vez, decidi arriscar vir cá.
- Pois, mas como deves ter reparado não é a melhor altura...
- Para ti, nunca é a melhor altura, Diana - em dois passos, aproximou-se de mim - Antes tinhas tempo para nós, agora pareces uma pessoa diferente, mais egoísta...
- Não, Ricardo, não te admito. - aumentei um pouco o tom de voz - Tu deverias ser a última pessoa a dizeres-me isso. Depois de tudo o que passei, mereço mais do que ninguém, a ter o meu espaço, a poder tomar as minhas decisões, a ser como realmente sou!
- Tens razão, Diana, eu nem sequer vim cá para te fazer qualquer acusação - Voltou-me as costas e sentou-se no sofá, colocando o cobertor num dos lugares vazios. - Vim cá para perceber o que se passou. Quero que me expliques o que a tua mãe disse no funeral e porque omitiste isso da carta que me deixaste quando te foste embora.
- Diana, - chamou ele, o tom de voz mostrou desagrado - é para ti,
Tirei o cobertor fino de cima das pernas e voltei a levantar-me.
Quando cheguei à porta, fiquei boquiaberta. Não contava que ele me encontrasse. De facto, ninguém da minha vida em Pedroso conhecia o meu lar, nem mesmo os meus pais.
- Como é que...? O que...? - Gaguejei.
O Ricardo sorriu levemente.
- Pensei que me tinha enganado na porta, quando ele...
- O Tiago - interrompi, mantendo a minha atenção presa a ele.
- Quando ele me atendeu, mas já vi que não. Posso entrar?
O Tiago praticamente barrava o acesso ao interior da casa. Deveria sentir que alguém invadia o território dele e talvez fosse bem verdade...
Acabamos por ir para a sala.
No meu íntimo, um sorriso queria impor-se ao meu estado céptico.
- Tiago, este é o Ricardo, meu amigo de infância, do qual já te tinha falado. Ricardo, este é o Tiago, o meu ex-marido.
O aperto de mão foi gélido, incomodados com a presença um do outro na minha casa.
- Precisava de falar contigo, Diana. Não sei se será possível. - falou o Ricardo, um pouco distante. - Se calhar é melhor vir numa outra altura.
O Tiago encostara-se a mim, querendo mostrar posse, poder que já não detinha.
- Se vieste a pedido da minha mãe, podes dar uma volta e regressar - respondi.
- Sabes perfeitamente que depois do que aconteceu, deves ser a última pessoa com quem ela quer falar - constatou.
- Sim, realmente tens razão - admiti.
Um silêncio incómodo pairou entre nós os três. O Tiago continuava a querer mostrar que ele era o homem que eu queria ao pé de mim, colocando as suas mãos em cima dos meus ombros, gesto que não me agradou.
Voltei a fitar o Ricardo nos olhos. Queria... Não, não queria.
- Tiago, vais-me desculpar - falei, permanecendo de costas para ele - mas eu e o Ricardo precisamos de falar a sós. Pedia-te que fosses embora.
A tarde de sábado estava amena, mas só me apetecia permanecer dentro de quatro paredes.
O Tiago almoçou comigo, recordando os velhos tempos não muito longínquos. Tinha ficado afectado com a morte do meu pai, apesar de só ter estado uma vez com ele. O meu ex-marido tinha uma particular ligação à família.
- Vais à missa de sétimo dia? - perguntou-me ele, depois da refeição.
Estávamos sentados lado a lado num dos dois sofás de três lugares, com a televisão ligada num canal generalista, onde passava uma comédia romântica pela milionésima e uma vez.
- Talvez. Não sei.
- Acho que deverias ir. Se quiseres acompanho-te.
Fiquei calada por uns segundos, reflectindo nas palavras dele até que decidi dizer:
- Se for, Tiago, não vais comigo. Mas agradeço.
- Não sei porque...
- Tiago, - pronunciei, tentando estar o mais séria possível - não quero que mistures as coisas. Somos amigos e sócios, nada mais. O divórcio está praticamente concluído e é assim que vai continuar, está bem?
- Não falei com essa intenção, Diana. Entendeste-me mal - defendeu-se, os seus olhos castanhos escuros mostrando uma ligeira indignação.
- Ora se eu não te conhecesse...
- Nunca escondi que continuo a gostar de ti como da primeira vez que te vi.
- Pois, mas não aceitaste a minha opinião em relação à minha família. Nunca respeitaste os problemas que tive com o meu pai, Tiago - Levantei-me, desta vez, calma, talvez por já ter perdido a conta às discussões sobre este tema - Nunca aceitaste o facto de eu não querer ter filhos, pelo menos por agora.
Ele ergueu-se também, colocando-se frente a frente comigo, o corpo demasiado perto de mim.
- Não entendo isso não, Diana. Estivemos casados quatro anos, era mais que natural que tivéssemos filhos.
- O problema é que não era natural, Tiago, para mim pelo menos não o era. Não quero ter filhos e não sei se alguma vez irei querer. Entendes isso?
A campainha tocou, deixando a discussão a meio, apesar de nós os dois já sabermos qual a conclusão: vários dias sem trocarmos uma palavra ou o estritamente necessário.