Apesar de ter acordado quase às cinco da manhã e ter sentido uma enorme vontade de ir até à varanda e fumar um cigarro, sentia-me ligeiramente mais tranquila. Um quase sentimento de paz percorria o meu corpo.
Fiquei a olhar para o tecto branco, acompanhado por um simples candeeiro cromado de três lâmpadas, numa espécie de forma da letra 's'.
A vida devia ser assim: simples como a decoração de toda aquela casa; simples como a perspectiva que a Filipa e o Mário tinham dela. Trabalhavam, regressavam para os braços um do outro, cuindando do fruto do seu amor, precisamente da forma como se deve tratar um filho.
Um filho... Tinha sido um objectivo que nunca tivera. Talvez o motivo se devesse realmente à experiência que tivera como tal, talvez tivesse receio de não conseguir reagir de forma diferente da do meu pai. Ou então, o instinto maternal ainda não tivesse surgido...
Voltei a adormecer, acordando mais tarde, por volta das nove horas, depois de um sonho que me atormentou. O meu pai, vindo do outro mundo, batia-me com um chicote, afirmando que tinha sido uma desilsão completa e que devia ter ouvido a minha mãe, quando esta dizia que não queria ter filhos.
Seria eu incapaz de seguir em frente?
O Ricardo almoçou connosco na cozinha decorada em tons de vermelho e cinzento.
- Bem, tenho que me ir embora - falou, enquanto tomávamos ambos um café na varanda. - A viagem ainda é longa e eu ainda tenho que preparar umas coisas para as aulas de amanhã.
- Sim, senhor professor - retorquiu.
- Eras assim tão bem educada para os teus professores?
- Que remédio não era? - sorrimos os dois. - Se algum preenchesse algo na caderneta, ia ser sermão e missa cantada, acompanhadas por algo mais, se calhar. - Não sabia como poderia dizer aquilo com um ar tão descontraído. Mas a verdade é que o Ricardo também sempre tivera o condão de fazer sobressair apenas os aspectos positivos de todo aquele longo pesadelo. - Obrigado por teres vindo. Gostei muito da nossa conversa - confessei.
- Sabes que apesar destes anos separados, continuo a fazer tudo por ti. - disse, aproximando-se de mim. - Acho que as adversidades fizeram com que tivessemos algo que poucos podem dizer que têm: uma amizade forte, que durará para todo o sempre.
- Estás cada vez mais lamechas - brinquei, tentando aliviar aquela tensão.
- Sim, talvez... Ainda bem que vim. Também acho que passámos um bom bocado. Acompanhas-me até à porta?
Anuí e dirigimo-nos para o corredor.
- Quando regressas? - perguntou.
- Talvez depois de amanhã já vá trabalhar, por isso amanhã à noite já devo estar em casa.
- Podemos combinar alguma coisa, que dizes?
- Sim. Podemos jantar, mas depois eu ligo-te.
Aproximou-se de mim mais uma vez. Bem perto depositou-me um beijo na testa, em sinal de todo o respeito que tinha por mim e beijou-me ao de leve nos lábios.
- Depois vemo-nos, não é?
- Sim. Boa viagem!