- Ia-te mesmo ligar, querida. Desculpa, mas já não vou aí jantar. - afirmei, tentando evitar que toda a dor que sentia transparecesse para o outro lado da linha.
- Mas o que se passa?
- O Tiago acabou de sair daqui de casa. Tivemos mais uma discussão daquelas... Mas acho que esta foi a última. - declarei, numa tentativa vã de que aquilo fosse algo banal.
- Há três meses disseste o mesmo e depois viu-se...
- Mas não, Raquel - retorqui. Sentei-me no sofá, puxando o pequeno cobertor axadrezado azul escuro para mim. - Desta vez foi tudo dito... Acho que tudo aquilo que ambos tínhamos guardado para nós nos últimos anos, foi dito...
- Queres que vá aí, amiga?
- Não, obrigado. Quero só me ir deitar e tentar dormir. Amanhã, se quiseres, almoçámos juntas, está bem?
- De certeza que não queres que vá aí?
- Não, Raquel. Obrigado e mais uma vez desculpa por não aparecer. Pede desculpa também ao Mário. Até amanhã.
Larguei o telemóvel em cima da mesa de centro, que estava por cima de um tapete liso preto, e fui para o quarto. Entrei e, intencionalmente, várias lembranças me vieram à mente. Umas em que estávamos a fazer amor, outras em que estávamos somente a trocar impressões sobre o dia um do outro e, por fim, algumas discussões, em que havia roupa a cair no chão , atirada com violência, molduras nossas viradas para baixo, escondendo os nossos sorrisos....
Corri para a casa-de-banho e levantei rapidamente o tampo da sanita. Não tinha quase nada no estômago, mas ainda assim vomitei fosse o que fosse que lá tinha estado guardado.
O azedume que sentia na boca era igual àquilo que naquele momento sentia pelo Tiago.
Puxei o autoclismo e deixei-me cair no chão gelado, encostada à sanita. Tirei uma das tolhas de rosto que estavam penduradas mesmo ao lado do lavatório. Limpei a cara e fiquei a olhar o vazio, sem me aperceber que as horas passavam e que os meus olhos fechavam, cansados da luta diária.
O dia seguinte foi mais um pesadelo. Tudo correu mal. Cheguei à loja de manhã sem as chaves para a abrir. Já atrasada, voltei para casa para as ir buscar.
Na parte da manhã entrou somente uma cliente, que nada comprou, nem sequer um par de meias, lançando-me um olhar desagradado, por pelos vistos, não ter nada que lhe agradasse. Às duas horas e meia da tarde, hora em que regressava do almoço - que foi um sumo e duas bolachas - recebi o telefonema da Adriana a informar-me que precisava de faltar, porque a sua mãe adoecera.
Como é evidente, dispensei-a sem qualquer dúvida e nem sequer ponderei descontar-lhe o dia. A rapariga não merecia.
Sem me poder ausentar por um longo período de tempo, permaneci na loja, lendo e relendo o Jornal de Notícias, que comprara logo pela manhã, nas restantes horas que compunham a tarde de quinta-feira. Mas o dia não podia acabar pacificamente. Ainda tinha que receber mais um telefonema interessante: o advogado da família, como se auto-intitulou, o doutor João Bernardo Costa, convocou-me para uma reunião informal em casa dos meus pais, nos Carvalhos, para a leitura do testamento, no sábado à tarde. Não me questionou se estaria disponível, apenas me disse qual era a hora para a comparência e que era imperativa a minha presença.
Não sabia se havia de rir ou de chorar. Mantive-me na posição de sempre: apreensiva com o que quer que fosse que viesse dos meus pais.