A última vez que tinha entrado em casa dos meus pais acompanhada pelo Ricardo ainda éramos pequenos, talvez com idade para frequentar a escola primária. Pouco tempo depois, o meu pai começou a afastar-me do meu único amigo e, por fim, quando tivemos que mudar de escola, ele certificou-se que não ficaríamos na mesma.
Nada mudara na sala desde que estive ali tempo suficiente para a contemplar na altura do funeral. A minha mãe gostava de ter tudo muito bem apresentado. Não tinha que ser necessariamente confortável, tinha que estar, isso sim, elegante e moderno. Parecia um espaço decorado por especialistas, algo que não duvidasse que ela tivesse contratado...
Mas opiniões à parte, a minha mãe recebeu-nos com o seu pequeno nariz empinado, indicando-nos o local onde o advogado estava a acomodar-se e a tirar a papelada necessária para a leitura do testamento e onde estavam uns pequenos pratos com aperitivos.
Porém, a minha mãe não me deixou prosseguir.
Agarrou-me pelo braço esquerdo e puxou-me para um canto, perto da grande mesa de jantar, e começou a disparatar quase silenciosamente.
- O que é que estavas a fazer no café da Noémia? O que é que ela te disse? Devias ter vindo apenas na hora que o João marcou.
- Não tens nada a ver com isso. - retorqui no mesmo tom.
- Não mudaste nada, continuas insubordinada como sempre. - retaliou. - E depois ainda te foste meter em casa dela para falares com aquele ali?
- Mas, mãe, é o Ricardo, é o filho da dona Noémia. Qual é o mal? - Ao perguntar aquilo da forma mais inocente e patética possível, senti-me novamente uma menina com receio do sermão da mãe, que não se interessava minimamente por ela, mas que não hesitaria a queixar-se ao marido.
- Que seja a última vez que ao vires cá, me fazes passar uma vergonha. Toda a gente sabe que o teu pai não te queria ver com aquele rapaz. Podes fazer o que quiseres da tua vida, mas longe daqui. Ainda gostava de saber o que estás aqui a fazer.
- Senhoras! - chamou o advogado.
- Sim, João, já vamos! - retorquiu a minha mãe.
Estava bem vestida, com uma calça vincada castanho chocolate e uma blusa de seda creme. O cabelo, como é óbvio, estava bem penteado, dando a sensação quer tinha acabado de sair do cabeleireiro. O rosto maquilhado em excesso, acentuava ainda mais as suas rugas.
- Acredito que têm muitas perguntas, mas é para isso mesmo que cá estou. O senhor Bernardino deixou escrita uma carta por ele, que foi autenticada pelo notário e como tal o que lá consta é o que terá validade. Não tenho conhecimento do seu conteúdo. O Bernardino exigiu apenas a presença dos três aqui, uma semana após a missa de sétimo dia e a leitura deste conteúdo só seria apenas lido se os três estivessem presentes no funeral e na missa.
- Essa boca foi para mim - comentei, com um sorriso sarcástico.
- Menina Diana, eu estou aqui presente nesta casa como favor à sua mãe neste sábado e por respeito ao seu pai. Por favor, não me faça perder o meu tempo - atalhou imediatamente o homem. O fato demasiado engomado não lhe assentava bem e a escolha da gravata com a camisa não tinha sido a melhor: a primeira era roxa, a segunda azul. Mas tinha um ar sério, áustero e demasiado profissional. Tentava aparentar menos anos com um fato de corte moderno, mas o seu rosto marcava as mais de cinco décadas vividas.
Num gesto intencional, suspirei perante aquela declaração, mas o Ricardo fez questão de colocar a sua mão em cima da minha numa chamada de atenção para a minha impaciência.
O sofá de canto permitia-nos ter uma visão de todos que ali estavam acomodados. Eu sentei-me no lado oposto ao da minha mãe, que se aproveitou para ficar ao lado do advogado.
- Bem, se me permitem então, vou proceder à leitura do testamento.