- Já acordaste?
- Parece que sim. Dói-me um pouco a cabeça.
- É natural! - retorquiu. Levantou-se da cadeira, que estava encostada à parede, mesmo ao lado da cómoda e sentou-se na cama, no lado oposto onde eu estava.
- O que aconteceu? Lembro-me de teres chegado e de me teres levado para a casa-de-banho e...
- Vomitaste. Nem chegaste a tomar banho. Resmungaste comigo e arrastaste-te até à cama. Nem sequer me deixaste ajudar-te.
- Já há muito tempo que não me acontecia tal coisa. - declarei.
- Precisas de comer qualquer coisa. Estiveste muitas horas a dormir com o estômago vazio. Vou preparar um chá e vais comer nem que seja duas bolachas. - afirmou seguro, ignorando o meu comentário.
Dez minutos depois, regressou ao quarto, com um tabuleiro, com o que tinha dito que eu ia comer, além de uma sandes para ele.
- Porque é que vieste aqui a casa, Ricardo? Eu sei que não cheguei a ir ter contigo.
- Pois, também achei estranho a tua demora. Eu tinha subido a casa e quando regressei ao café, disseram-me que tinhas saído da casa dos teus pais a correr e que tinham ficado com a impressão de que estavas a chorar. Achei estranho, mas esperei que me dissesses alguma coisa, mas não disseste... Depois telefonei-te, mas não me atendeste. Tentei, tentei, mas nada feito, não consegui falar contigo. Comecei a ficar preocupado, até que a minha mãe me disse para tentar vir ver se estavas em casa.
- Sim e aqui estava eu, bem acompanhada, não?
- O que te levou a embebedar-te? O que se passou com a tua mãe quando regressaste a casa?
Respirei profundamente, tentando escolher as melhores palavras para descrever aquilo que tinha acontecido há umas largas horas.
- Entrei na casa, no preciso momento em que o advogado saiu. Acertei mesmo. Uns minutos mais cedo e se calhar nada daquilo tinha acontecido... - desabafei, mais para mim própria.
- O que é que aconteceu, Diana? - A sua voz não parecia mais do que um murmúrio, preenchida de preocupação.
- É engraçado como a vida é recheada por breves momentos em que nos podem mudar a vida... Mal ouvi o barulho da porta fechar-se, só tive tempo de sentir uma dor enorme na cara. A minha mãe tinha-me batido... É inacreditável, não é? Pensei que isto já tinha acabado... há uns anos... - não evitei derramar uma lágrima. Era inevitável. A dor era tão grande... - Senti em cheio um anel que ela tinha... Ela fez-me muita coisa, mas nunca pensei que chegasse a esse ponto. Sempre tinha sido suficientemente esperta, para simplesmente fazer queixas ao meu pai... Mas agora não havia o meu pai para... Depois, ela fez um perfeito discurso de vítima. Que ela é que tinha dado a vida dela para estar ao pé do meu pai, que ela dedicou-lhe a vida e que nunca o tinha abandonado como eu, etc. etc., etc.... Que nem eu nem tu merecíamos fosse o que fosse do meu pai, muito menos eu, porque eu não passava, como sempre, de uma pessoa ingrata. Ela disse também que ia tentar fazer os possíveis para que o testamento fosse considerado inválido...
- Mas mesmo que faça isso, Diana, o único prejudicado sou eu, porque não tenho nenhum laço sanguíneo convosco.
- Eu sei disso e disse-lhe. Parecia que até àquele momento não se tinha apercebido da ironia das coisas. - Trinquei uma bolacha e senti o chá de camomila demasiado quente nos lábios. - Aí mudou o discurso. Começou a dizer que o meu pai também a tinha desiludido. Começou a acusar o meu pai por este não lhe ter dado o valor que ela merecia, mas que tinha tido também oportunidade de lho dizer na cara. Mesmo antes de morrer...
- Isso é arrepiante, Diana.
- Isso fez com que o que a tua mãe me disse fizesse todo o sentido.
- O divórcio?! - interpelou ele.
- Sim. Se é verdade o meu pai a ter ameaçado com o divórcio, não sei até que ponto ela não iria para manter a boa vida que tinha há muitos anos.
- Acho que isso é uma acusação muito grave, Di. Estás a insinuar que a tua mãe seria capaz de matar o teu pai.
- Não digo que fosse capaz de matar, mas pelo menos pô-lo mais débil para ele continuar dependente dela. - Só de pensar nisso, o meu estômago revirava-se. - Repara, ele tinha graves problemas de coração, ainda estava a recuperar de um ataque do coração que tivera meses antes... Estavam os dois sozinhos em casa quando ele se sentiu mal. Ela pode ter feito com que ele se enervasse... Ela até pode ter esperado o suficiente para ser ineficaz a ida da ambulância...
- Calma, Diana, estás a imaginar muita coisa. A tua mãe, tal como o teu pai, tinham muitos defeitos - acho que mesmo que a maioria das pessoas, mas daí dizeres que a tua mãe fez ou ajudou a que o teu pai tivesse outro ataque do coração é um passo muito grande...
- Eu sei lá, Ricardo. Ela disse-me tanta coisa, fez-me tantas acusações, ofendeu-me tanto... Ela chegou ao ponto de desejar a minha infelicidade e a minha falência. Disse que o meu divórcio era sinal de que nunca seria capaz de ser feliz e de fazer alguém feliz e que iria acabar sozinha como ela.
- Realmente a tua mãe foi e é muito cruel, mas... Olha, tens que esquecer isso e acima de tudo, tens que ter a mesma força que tiveste há uns anos - aproximou-se mais de mim e acariciou-me o rosto.
Afastei-me ligeiramente dele.
- Não consigo. Não consegui da primeira vez, não vou conseguir agora.
- Como assim?!