Depois do jantar e de uma chamada de atenção para os malefícios do tabaco, voltámo-nos a sentar no sofá.
Eu e o Ricardo tínhamos começado a fumar aproximadamente com doze anos, influenciados um pelo outro e por outros colegas de escola. Entretanto, ele ganhou consciência de que aquilo só o prejudicava, quando estava no segundo ano da faculdade. Eu não. Tinha deixado de fumar durante dois anos, mas desde que regressara para o Norte, que de tempos a tempos voltava a cair na tentação. Até podia ficar uma, duas semanas sem fumar, mas depois o vício de boca era mais forte que eu...
- Tenho ali uma coisa para te mostrar - disse.
Levantei-me e fui até a um armário que tinha numa pequena divisão, onde arrumava entre outras coisas os casacos e os guarda-chuvas.
- Sinceramente, já tenho isto aqui há tanto tempo, que já nem me lembrava... - Era uma caixa de cartão, com colagens de objectos que me faziam recordar a pequena parte em que fora minimamente feliz. Regressei à sala e, deste feita, sentei-me mais perto dele. - Com o Tiago nunca pude recordar estes momentos... Primeiro, porque ele ficava com ciúmes da relação que tive contigo e depois porque o interesse dele pelo meu passado nunca foi muito... - lamentei.
- Mas ele sabe que o teu te batia?
- Sim, sabe. Mas acha que eu exagero nas coisas que conto...
- A sério?!
- Sim. Acho que ele tem uma certa dificuldade em perceber que nem todos os pais são iguais. Ele teve uma infância feliz, os pais dele são excelentes pessoas e, como tal, tem uma falsa ideia de que todos tiveram uma educação assim. Mas chega de falar sobre ele - disse, abrindo a caixa e retirando alguns objectos de lá: umas fotos nossas, guardanapos de restaurantes onde íamos e nos aventurávamos a escrever uns poemas infantis, bilhetes de cinema...
- Lembro-me deste filme. - Tu assustaste-te com uma cena de suspense e agarraste a minha mão com força, que quase ficava branca...
- Não voltei a vê-lo - afirmei.
- Então podíamos arranjá-lo e vê-lo, para ver se continuas a mesma assustadiça daqueles tempos...
- Que engraçadinho!
Entre mais algumas recordações, o tempo foi passando e a noite foi dando lugar à madrugada.
- Já passa da uma da manhã. É melhor ir andando.
- A que horas entras?
- Tenho que estar na escola antes das onze horas, mas mesmo assim é melhor ir andando.
- Sim, tens razão.
Acompanhei-o até à porta.
Ele aproximou-se de mim e deu-me um beijo em sinal de respeito na testa, um carinhoso na ponta do nariz e encostou os seus lábios aos meus, intentando um beijo mais prolongado, ao qual não fui alheia.
Deixei-me envolver pelo seu toque quente, hesitando em colocar as minhas mãos no corpo dele como as minhas hormonas ordenavam.
Senti todo o desejo dele e o meu sobreporem-se à sanidade mental e, em instantes, fui procurando um apoio para as costas, encontrando a parede do lado oposto à porta de saída.
- Ai! - queixei-me.
- Magoei-te? Desculpa.
- Não - respondi. - Não me magoaste. Bati com a cabeça neste maldito quadro - injuriei, levando a mão à nuca.
- Posso tirá-lo... - disse, o seu sorriso malandro declarou tudo o que tinha em mente.
- Não, não é preciso - Assumi uma posição séria num momento de clareza e disse - É melhor ficarmos por aqui. Desculpa.
- Sim, tens razão. Também já é tarde. Depois falamos então.
Voltou a beijar-me a testa e saiu.