Depois de um dia mais intenso que o anterior na loja - com um maior número de vendas e a recepção de ovos produtos -, eu e a Adriana fomos para casa satisfeitas e com o sentido de dever cumprido.
Tomei um longo banho e preparei-me para a minha saída com o Ricardo.
Vesti uma túnica de malha preta com uma faixa azul petróleo no fundo e acompanhei com uns leggins e umas botas de cano alto também negros. Os meus cabelos castanhos escuros - herança genética vinda do meu pai - iam soltos, mas deitei um pouco de espuma para que as madeixas onduladas não estivessem tão selvagens.
O Ricardo apareceu pontual como já era característica dele desde que o conheci. Vestia umas calças de ganga, hábito diário, mas com uma camisa preta, com umas listas finas brancas na horizontal, sendo que a acompanhava um blazer de fazenda cinza escuro.
O local para o repasto recaiu sobre um restaurante na Avenida Fernão Magalhães, no Porto, que ele gostava muito e recomendava. Era um espaço pequeno, com perto de uma dúzia de mesas, decoradas com uma toalha azul forte, com paredes revistas a pedra, ou imitação, dando um aspecto rústico. O empregado, um homem alto e cabelo ralo, era simpático e afável.
- Ele já me conhece - comentou o Ricardo, depois de termos feito o pedido.
- Eu percebi. Também percebi que tens por hábito jantar fora...
- Não - respondeu. - Todas as sextas-feiras, tenho, por hábito, juntar-me com alguns colegas de faculdade, com os quais mantive contacto e dão aulas aqui perto, e vimos normalmente jantar aqui e...
- Pois, então estraguei-te os planos...
- Não, não estragaste. Hoje íamos a um outro sitio. Portanto, eles foram, mas eu não. Mas como te disse e repito se não te importares, depois vamos ter com eles, a um bar ali na Ribeira...
- Que também já é hábito irem. - adiantei. Ele acenou que sim. - Tornaste-te num homem de hábitos.
- Isso é bom ou mau? - perguntou.
Peguei no maço de tabaco que tinha na carteira, mas só depois me lembrei que tinha de me levantar e ir para a rua se quisesse fumar. Acabei por pousá-lo em cima da mesa. O Ricardo retribuiu-me a ironia com um sorriso.
- Então não respondes?
- Não sei o que te responder. Acho que criaste uma rotina confortável na tua vida, mas sem que esta se torne demasiado monótona. Serve?
Ele soltou uma gargalhada, divertido com o meu comentário. Bebeu um gole de vinho branco e disse:
- Sou o único que ainda vive com os pais. Entre os meus amigos, sabes? Todos eles já saíram debaixo das saias da mãe, eu não. Talvez por isso goste daquilo que já se tornou um pouco de rotina para mim. Os meus já se acostumaram com isso.
- Nunca quiseste ter o teu canto? Eu sei que nós falávamos em ter o nosso canto, mas...
- Só imaginei isso... Nunca me imaginei a viver sozinho.. Quando estive com a Bárbara, no curto espaço de tempo em que estivemos noivos, ainda chegamos a ver alguns apartamentos, mas nunca encarei verdadeiramente a possibilidade de sair de casa dos meus pais e acho que se o fizer, terá que ser perto deles. Eles ainda precisam de ajuda no café, especialmente agora que a idade começa a pesar... O meu irmão, o Renato, só pensa na faculdade e nas festanças e portanto não quer saber de ajudar... Mas também de uma certa forma, sinto uma espécie de obrigação, porque eles se esforçaram muito para me manter durante mais de um ano em Guimarães-
- É enternecedor! - exclamei. Foi a única palavra que me veio à mente. Não sabia o que era ter pais a fazerem sacrifícios de uma maneira tão... tão desprendimento!
- Eu sei que...
- Os teus pais merecem todo esse carinho que sentes por eles. Acho que apesar deles nunca terem encarado de frente o problema... do facto dos meus pais me baterem... eles merecem toda a consideração que tens por eles. Deram-te, e ao teu irmão, a melhor educação que duas crianças poderiam ter: além de casa e roupa lavada, deram-vos amor e carinho, compreensão. Tu tiveste tudo aquilo que eu sempre desejei e nunca tive- O meu pai nunca mostrou que me amava. A única forma era quando me batia ou me castigava e me dizia que só fazia aquilo para o meu próprio bem.
Inevitavelmente aquelas lembranças só me traziam dor e raiva. E inevitavelmente faziam-me chorar. As lágrimas desceram consoante eu falava e me recordava daquilo. Não queria chorar, especialmente num lugar público. Especialmente frente ao Ricardo. Já tinha chorado tantas vezes quando éramos mais novos. Pensei que já tinha passado aquela fase, pensei que tudo já estava colocado para trás das costas como se de uma poeira se tratasse. Mas sentia-me tão vulnerável nas últimas semanas. O divórcio, a morte do meu pai, novamente o divorcio, as discussões, as recordações constantemente a assombrarem-se a mente. Tanta coisa...
- Não te queria pôr triste, Di.
- Não tens culpa. Vou só ali à casinha. Venho já. Podes começar a servir-nos. - Afirmei, quando o empregado trouxe a travessa com os medalhões de carne de vaca e batatas fritas aos palitos que íamos partilhar.