- Não podes dizer as coisas assim. As pessoas têm os seus problemas...
Ele podia ver que ela travava uma batalha interior para não mostrar qualquer emoção naquele momento, como era habitual. Mas era infrutífera. A dor era visível nos seus olhos castanhos.
- O Filipe era meu marido, por isso posso falar dele assim.
O som de alguém bater à porta fez-se soar, para logo de seguida, a empregada entrar, com o pedido que Juliana tinha feito.
Esse momento de interrupção foi suficiente para ela se recompor.
- Bem, a questão aqui é que eu detenho agora praticamente a parte que pertencia ao Filipe na empresa. Não sou simplesmente uma funcionária, entendes? Só pelo facto de sermos colegas de trabalho já era motivo suficiente para isso, mas acresce que sou tua chefe. - referiu ela, num tom compreensivo, enquanto bebia o café.
- Não aceito esse motivo, Juliana, mas prometo que vou tentar ser compreensivo.
- Então podemos ver as coisas de outra forma ou de uma forma complementar - indagou ela, pousando a pequena chávena branca, com uma delicada linha dourada no topo, em cima da mesa de centro. - Eu não quero voltar a magoar-me.
- Como é que podes dizer isso se nem sequer tentámos? - perguntou ele, fazendo menção de se levantar.
Ela levantou a mão, com o objectivo de o manter afastado.
- À partida já sei que é isso que acontece, Rafael. Olha, eu saí muito magoada da minha relação com o Filipe. Estávamos casados há pouco mais de um ano quando ele se... Eu não sabia que ele estava assim tão mal. Sabia que a relação com os pais dele, especialmente com a mãe, era má, mas... Aquilo era demasiado para ele, mas nunca pensei que... Nunca pensei que ele me deixasse sozinha...
Aquela afirmação era tão verdadeira, tão cruel.
- Deixei de acreditar nas pessoas, Rafael. É tão simples como isso.
'Era mais uma declaração que parecia fazer sentido em relação às suas acções', pensou ele.
- Afastei todas as pessoas da minha vida. Nada do que me diziam parecia ser real. Transformei-me numa pessoa por natureza desconfiada. - admitiu contrariada.
- Não... não tens ninguém?
'Como era possível que alguém conseguisse viver de forma tão solitária?', perguntou-se ele. 'Quer dizer, isso nem sequer era viver, era deixar que os dias passassem, à espera do seu último suspiro de vida...'
- Tenho o José, que era o melhor amigo do Filipe e que se tornou na única pessoa em que confio, porque também foi magoado por ele. Tenho dois irmãos, uma irmã e um irmão, que vivem em Matosinhos e na Maia, respectivamente, mas que raramente visito e me visitam. Mesmo depois destes anos, não consigo... Não consigo sorrir por simpatia, entendes? Não engano ninguém como sou e não deixo que ninguém em engane. - declarou, decidida.
- As coisas não são assim a preto e branco, Juliana. A vida não é assim tão linear.
- Talvez...
Naquele momento permitiram-se olhar mutuamente. Ele viu o rosto triste dela, o olhar vazio e uma mente distante, quase a desabar. Ela viu nele a esperança que já deixara de ter há muito tempo nas pessoas em geral e o desejo de mudar o mundo.
Apetecia-lhe levantar-se e abraçá-la. Não queria continuar a vê-la sofrer daquela maneira. Não a pressionara para aquilo. Ele só queria uma oportunidade de a conhecer...
Decidiu mudar de assunto.
- Qual é o segundo motivo? - perguntou ele.
Naquele preciso momento, ouviu-se a grande porta da entrada abrir-se e depois fechar-se.