Abri a persiana pela manhã e observei o mundo lá fora, satisfazendo-me por estar protegida das intempéries deste Inverno.
Peguei no embrulho rasgado, que estava em cima da cómoda, e retirei a prenda que me tinham oferecido no dia anterior: uma bonita écharpe em preto e branco. Admirei-a, pensando com qual conjunto conjugaria melhor aquela peça, mas por enquanto tinha que saber onde a guardar, quando não a usasse. A gaveta das écharpes e cachecóis estava cheia e, como tal, tinha que os mudar de lugar.
Foi então que me lembrei de uma das gavetas do meu roupeiro. Era a última de um conjunto de três que estavam na vertical e que ficava mais perto da parede do quarto. Estava esquecida, quase imperceptível ao dia-a-dia. Por estar tão escondida, eu guardava lá com frequência papéis, fotografias, enfim objectos que tinham um certo significado para mim.
Então, ao abri-la encontrei, no topo, um guardanapo com o símbolo de um restaurante. Era uma lembrança de uma viagem que tinha feito a Coimbra, na altura da faculdade, nas raras vezes em que todos se conseguiram juntar para ver uma exposição de fotografia que se espalhava pela cidade. Juntamente com isso, estavam fotografias de tempos esquecidos, que não voltaram a se repetir.
Retirei-os e coloquei-os delicadamente no chão.
Em seguida, retirei papéis de coisas escritas por mim, de momentos vividos com intensidade. Mas ignorei-os e por baixo encontrei uma pequena caixa de metal, já com ferrugem, de uns bombons que eu gostava muito e que despertou mais a minha atenção. Tirei a tampa e surpreendi-me com o seu conteúdo. Era uma espécie de junção entre a vida e a morte, a esperança e a mágoa. Havia uma folha muito fina dobrada em quatro. Desdobrei-a. Era o documento que datava da altura do meu nascimento: tinha o meu nome, o meu pequeno peso e a minha pequena medida, tendo sido acrescentada uma observação importante, o defeito com que tinha nascido no coração. A este papel estava associada a enorme luta pela sobrevivência, minha e da minha mãe. Foram mais de dois anos a resistir a constantes infecções, doenças perante um coração bastante debilitante. Lembrava-me constantemente das histórias que a minha querida progenitora contava com sofrimento e orgulho. Eu estava viva!
Mas ele não estava.
Ao lado deste documento, vi a coleira dele. Mais de treze anos a acompanhar-me nas várias etapas da minha vida: viu-me ter sucesso na escola, sem o entender que o era, viu-me começar a namorar, viu-me a casar. Era tudo para mim. Mas até os melhores amigos se vão e depois de ter sido atingido por um tumor na anca e sem esperança de cura, tive que lhe dizer Adeus. Era o meu cão, o meu amigo, o meu menino, como lhe chamava com frequência. Mas tenho as melhores recordações dele, de quando ficava feliz quando me via chegar a casa, de quando sabia que eu ia levá-lo a passear... Fiquei triste ao ver aquilo, mas por outro lado, dei graças por o ter tido na minha vida.
Tirei todos os objectos da gaveta e decidi colocá-los numa das gavetas da minha mesa-de-cabeceira. Afinal, as lembranças eram mais importantes do que pensava. Tinham sido momentos vividos por mim, que por mais que me doessem, não podiam ser relegados.
Arrumei todos os cachecóis e écharpes, limpei as lágrimas e fui até à cozinha tomar o pequeno-almoço.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias