- Desculpe, Lurdes, mas...
- O meu marido estava louco! - acusou, levantando-se do sofá, indo até à janela, decorada com uma cortina branca de organza, com singelos motivos. Virou-se para nós e continuou com o ataque, como se eu e o Ricardo não estivéssemos presentes naquela mesma sala. - Como é possível que ele tenha deixado uma casa à ingrata da nossa filha? Como é possível que ele tenha deixado seja o que for a este fulano? - questionou, apontando para o Ricardo, mas continuando a fixar o olhar no advogado.
- Lurdes, tenha calma! - pediu o doutor João. - O Bernardino estava perfeitamente consciente do que estava a fazer. Foi ele próprio que redigiu o testamento, foi ele que definiu quem ia receber o quê.
- Claro e de certeza influenciado por este aqui. - voltou a apontar o dedo ao Ricardo. - Pelo que ele dizia encontravam-se, não era?
- Desculpe mais uma vez, Lurdes, mas não vou permitir que coloque em causa as decisões do meu cliente! - falou, exasperado, assumindo uma postura mais profissional.
Enquanto o advogado continuava a tentar explicar a situação à minha mãe, o Ricardo optou por dirigir-se à porta de saída. Consegui alcançá-lo já na rua, quando ia começar a atravessá-la para ir até ao café dos pais.
- Espera, Ricardo - pedi.
- O que foi? -perguntou, impaciente, virando-se para mim.
- Já vais embora?
- Vou dar a notícia aos meus pais, que com certeza ficarão felizes por mim ao contrário da tua mãe.
- Pois... Olha, queria fazer-te uma pergunta, pode ser?
- Claro - respondeu, dando dois passos na minha direcção.
- Sabias desta história do meu pai me ter deixado uma casa?
- Sabia - respondeu, secamente.
- E porquê? Porquê que ele me deixou uma casa? Ele...
- O teu pai queria proporcionar-te um local onde pudesses sentir-te bem, porque apesar de tudo, ele ganhou consciência de que nunca te sentiste bem na casa onde cresceste.
- E porque é que ele acharia que me poderia sentir bem numa casa dada por ele? Eu saberia sempre que aquela casa teria uma ligação a ele. Eu vou-me lembrar sempre dele naquela casa, eu vou...
- Diana, - pronunciou o meu nome com veemência, enquanto me agarrava os braços - não vais ficar histérica como a tua mãe, pois não?
- Como!?
- Respira fundo - pediu - O teu pai deixou-te a casa, porque à maneira dele, gostava de ti e quis deixar-te algo valioso e importante. Agora, se quiseres conversar melhor sobre o testamento, acalmas-te e podemos ir até ao café dos meus pais. Pode ser?
- Sim... - respirei fundo como ele me disse - vou só buscar lá dentro o meu casaco e a minha carteira. Já vou lá ter.
'Antes de mais, se o doutor João está a ler este texto, é porque a constatação é óbvia: morri. Tenho problemas de coração, que só tendem a piorar, por isso...
Bem, mas vamos ao que interessa.
Ao Ricardo deixo uma quantia substancial em dinheiro, que estará no final do testamento a quantia exacta. Este montante será para ele e para a sua família. O Ricardo mostrou ser um homem com bastante potencial, com vontade de lutar por aquilo em que acreditava e acredita. Não entendi isso no devido tempo, mas tentei nos últimos anos recuperar esse tempo perdido. Por outro lado, sei que teve uma importância muito grande na vida da minha filha, especialmente naqueles momentos em que ela achou que fui injusto com ela. Toda a arrogância e egoísmo foi-se dissipando à medida que nos fomos conhecendo. A minha mulher não o soube, mas encontrávamo-nos e falávamos imenso sobre o que se passou e o que se passava. O facto da minha filha ter fugido abriu-me os olhos para duas coisas: que afinal o amor que o Ricardo sentia por ela, não era simplesmente algo de adolescente, mas sim um sentimento verdadeiro e profundo e que a Diana fugiu porque algo estava realmente errado.
Não peço desculpa por nada do que fiz, pois o fiz convicto de que estava a educá-la da melhor forma, dentro dos meus princípios morais. Ela não terá entendido que só queria o melhor para ela e que estava a prepará-la para a vida.
Dito isto, passo para o que deixo à minha filha.
Não me consegui aproximar dela desde que regressou, porque ela não quis e como já disse antes, consigo compreendê-la. Mas com esse objectivo em mente, comprei um apartamento no centro de Gaia para ela. Está todo mobilado e preparado para ela se mudar para lá, com o marido ou com outra pessoa que ela ache que a fará feliz...'
- Isto é ridículo! - exclamei.
- Diana! - retorquiu o Ricardo. - Deixa-o terminar.
- Sim, menina, já lhe pedi para não me fazer perder tempo! Vou continuar então.
'A única coisa que desejo para a minha filha é que ela seja realmente feliz. Se, ao que parece, não consegui fazer com que ela se sentisse bem nesta casa e com os pais, espero que a atitude que tomou a tenha feito agora uma mulher. Uma mulher com um M bem grande. Além disto, quero acrescentar que apesar de ter ficado bastante ressentido com o facto de nos ter roubado e de nos ter mentido durante o último ano que esteve connosco, isso foi tudo perdoado e esquecido. Além da casa, deixo-lhe também uma pequena quantia em dinheiro, na esperança que o seu negócio avance mais um passo.
Por último, a minha esposa. À minha esposa, deixo esta casa e todo o seu conteúdo, onde sempre vivemos, onde construímos a nossa vida e criámos a nossa filha. Espero que continue a ser feliz aqui como sempre aparentou ser. Cometemos muitos erros em relação aos outros e as nós, mas tentámos sempre ultrapassá-los. Quero que fique nesta casa, que aquando a sua morte, passará para a Diana. Além disto, deixo-lhe também uma quantia em dinheiro para poder gozar a vida que lhe resta. Quero que faça as viagens que sempre quis fazer e que, por um motivo ou por outro, não estive disposto a isso.
E é isto. Qualquer dúvida que tenham, tenho a certeza que o doutro João estará disponível para os esclarecer.
Adeus!'
- Mas o que é isto? - reagiu a minha mãe.
A última vez que tinha entrado em casa dos meus pais acompanhada pelo Ricardo ainda éramos pequenos, talvez com idade para frequentar a escola primária. Pouco tempo depois, o meu pai começou a afastar-me do meu único amigo e, por fim, quando tivemos que mudar de escola, ele certificou-se que não ficaríamos na mesma.
Nada mudara na sala desde que estive ali tempo suficiente para a contemplar na altura do funeral. A minha mãe gostava de ter tudo muito bem apresentado. Não tinha que ser necessariamente confortável, tinha que estar, isso sim, elegante e moderno. Parecia um espaço decorado por especialistas, algo que não duvidasse que ela tivesse contratado...
Mas opiniões à parte, a minha mãe recebeu-nos com o seu pequeno nariz empinado, indicando-nos o local onde o advogado estava a acomodar-se e a tirar a papelada necessária para a leitura do testamento e onde estavam uns pequenos pratos com aperitivos.
Porém, a minha mãe não me deixou prosseguir.
Agarrou-me pelo braço esquerdo e puxou-me para um canto, perto da grande mesa de jantar, e começou a disparatar quase silenciosamente.
- O que é que estavas a fazer no café da Noémia? O que é que ela te disse? Devias ter vindo apenas na hora que o João marcou.
- Não tens nada a ver com isso. - retorqui no mesmo tom.
- Não mudaste nada, continuas insubordinada como sempre. - retaliou. - E depois ainda te foste meter em casa dela para falares com aquele ali?
- Mas, mãe, é o Ricardo, é o filho da dona Noémia. Qual é o mal? - Ao perguntar aquilo da forma mais inocente e patética possível, senti-me novamente uma menina com receio do sermão da mãe, que não se interessava minimamente por ela, mas que não hesitaria a queixar-se ao marido.
- Que seja a última vez que ao vires cá, me fazes passar uma vergonha. Toda a gente sabe que o teu pai não te queria ver com aquele rapaz. Podes fazer o que quiseres da tua vida, mas longe daqui. Ainda gostava de saber o que estás aqui a fazer.
- Senhoras! - chamou o advogado.
- Sim, João, já vamos! - retorquiu a minha mãe.
Estava bem vestida, com uma calça vincada castanho chocolate e uma blusa de seda creme. O cabelo, como é óbvio, estava bem penteado, dando a sensação quer tinha acabado de sair do cabeleireiro. O rosto maquilhado em excesso, acentuava ainda mais as suas rugas.
- Acredito que têm muitas perguntas, mas é para isso mesmo que cá estou. O senhor Bernardino deixou escrita uma carta por ele, que foi autenticada pelo notário e como tal o que lá consta é o que terá validade. Não tenho conhecimento do seu conteúdo. O Bernardino exigiu apenas a presença dos três aqui, uma semana após a missa de sétimo dia e a leitura deste conteúdo só seria apenas lido se os três estivessem presentes no funeral e na missa.
- Essa boca foi para mim - comentei, com um sorriso sarcástico.
- Menina Diana, eu estou aqui presente nesta casa como favor à sua mãe neste sábado e por respeito ao seu pai. Por favor, não me faça perder o meu tempo - atalhou imediatamente o homem. O fato demasiado engomado não lhe assentava bem e a escolha da gravata com a camisa não tinha sido a melhor: a primeira era roxa, a segunda azul. Mas tinha um ar sério, áustero e demasiado profissional. Tentava aparentar menos anos com um fato de corte moderno, mas o seu rosto marcava as mais de cinco décadas vividas.
Num gesto intencional, suspirei perante aquela declaração, mas o Ricardo fez questão de colocar a sua mão em cima da minha numa chamada de atenção para a minha impaciência.
O sofá de canto permitia-nos ter uma visão de todos que ali estavam acomodados. Eu sentei-me no lado oposto ao da minha mãe, que se aproveitou para ficar ao lado do advogado.
- Bem, se me permitem então, vou proceder à leitura do testamento.
Cheguei a Perosinho às três da tarde. Uma hora de antecedência para a tal reunião com o advogado de família.
Estacionei o carro junto ao muro da casa dos meus pais e atravessei a rua de paralelo já gasto pelo tempo até ao pequeno café da mãe do Ricardo.
Ao subir os dois degraus da entrada, percebi que todas as conversas paravam. Nos seus pensamentos passava, com certeza, a peculiar pergunta: 'é a filha do Bernardino e da Lurdes. O que ela está aqui a fazer?'
Passei entre as mesas à procura de uma vaga para eu me acomodar, tentando ignorar os olhares e os comentários silenciosos dos meus antigos vizinhos. Sentia-me observada a cada movimento que fazia...
A senhora Noémia contornou o balcão com tampo de mármore e aproximou-se de mim. Pedi-lhe um café e perguntei-lhe pelo Ricardo. Respondeu-me que antes de o avisar que eu estava ali, queria falar comigo.
- Este não é o melhor local para conversarmos sobre isto, mas como não costumas vir para estes lados... - Tinha-se sentado de costas para a maior parte dos clientes, que se amontoavam nas mesas iniciais do estabelecimento. Falava num tom baixo, mostrando a discrição de que precisava para o assunto em questão. - Bem, como tu sabes, melhor que ninguém ao que parece, os teus pais sempre foram excelentes pessoas em manter os seus problemas dentro de quatro paredes. Nem mesmo com os amigos eles partilhavam as coisas. Não sei se por quererem ser discretos, por não quererem pessoas intrometidas ou simplesmente porque talvez soubessem que faziam algo de errado. Não sei...
Beberiquei o restante café da pequena chávena escaldada, sem tirar os olhos daquela mulher de cabelos curtos e encaracolados, que ora pendiam para o castanho ora para o cinzento.
- Para a maior parte das pessoas, os teus pais tinham um casamento perfeito e só foi ligeiramente abalado pela filha mal agradecida. - continuou ela. Acomodou-se mais um pouco na cadeira de madeira, forrada a um tecido de má qualidade. - Ninguém aqui sabe o teu lado da história, apenas nós e não vamos espalhá-lo, não te preocupes, até porque não é da nossa conta para fazer seja o que for agora, pois já não podemos alterar nada. Nós nunca acreditamos numa única palavra do Ricardo e nem mesmo nas supostas provas que tu mostravas. Para nós, as nódoas negras eram simplesmente o resultado das vossas brincadeiras. Nunca passou disso. Mas depois foste embora e tudo começou a fazer sentido, até mesmo o facto do teu pai não te querer cá em casa com o Ricardo... - respirou fundo, preparando-se para finalmente abordar o assunto de que queria falar. - Bem, o certo é que o casamento dos teus pais realmente nunca foi perfeito. Eles eram diferentes, entendes? Depois de tu nasceres, ainda pensei que tudo melhorasse. As condições financeiras melhoravam a olhos vistos. O objectivo do teu pai foi cumprido: ele tinha a sua própria frota de táxis, entendes... E a tua mãe pôde ficar em casa, deixar de trabalhar, que era o que mais queria. Bem, tu deves ter uma ideia de como os teus pais eram. Hás uns meses atrás, sem querer, ouvi uma discussão entre eles. Sabes como é, às vezes deixámos abertas as portas das nossas casas... Foi uma discussão muito feia, com acusações mútuas, mas o certo é que ouvi o teu pai falar em divórcio.
- O queê?! - pronunciei por fim. - O meu pai? Aquela pessoa tão cumpridora dos bons costumes e das regras?
- Agradeço que não sejas irónica, Diana. Não te conhecia assim.
- Desculpe que lhe diga, mas a única pessoa que me conheceu verdadeiramente foi o Ricardo. - Irritei-me quanto àquela afirmação. Nunca tinha acreditado numa única palavra da minha parte, dizendo sempre que era uma invenção das nossas cabeças, minha e do Ricardo, e agora... - Quanto aos meus pais duvido muito dessa situação. A minha mãe só via o meu pai à frente. Eu fui só um meio para satisfazer o desejo do meu pai querer ter filhos, pelo menos foi a essa conclusão a que cheguei. Agora, pode ir dizer ao Ricardo que estou aqui e que quero falar com ele?
A Noémia levantou-se contrariada com a minha reacção e saiu do café, dando indicação ao marido, o Abílio, que ia a casa. Pouco tempo depois regressou sozinha, dizendo-me que o Ricardo tinha dito para eu subir.
- Deixei-te a porta aberta. Ele está no quarto. Suponho que ainda te lembres. - retorquiu.
Agradeci e tentei passar entre ela e a mesa.
- A única coisa que te peço, Diana, é que não voltes a magoar o meu filho como o fizeste há uns anos atrás. Ele ficou de rastos e demorou muito tempo até chegar onde está. Ele tem uma vida tranquila e estável. É professor e tem uns amigos que realmente se preocupam com ele. Não o voltes a magoar.
'Raios, mas quem ela pensa que é?'
A porta de madeira já era bastante antiga, mas ainda assim estava em bom estado. Entrei e subi as escadas que davam ao andar superior, que ficava mesmo por cima do café.
De repente vi duas crianças, um menino e uma menina, a correrem atrás uma da outra, rindo, gritando uma para a outra. Uma dizia 'não me apanhas' em tom de desafio e a outra respondia que a ia apanhar de certeza. Era eu e o Ricard.Um daqueles momentos inocentes que tivemos juntos naquela casa.
Bati à porta do quarto dele, que ainda tinha duas placas coladas, uma que informava a quem pertencia aquela divisão e outra dizia 'não incomodar'.
Depois de ele me dar autorização, entrei e deparei-me com um quarto sóbrio. Paredes brancas, um cama de solteiro, prateleiras recheadas de livros, uma cómoda e uma secretária com dois computadores. Ele estava compenetrado no portátil, digitando uma série de palavras num documento de texto.
- A minha mãe disse-me que querias falar comigo - falou, mantendo-se confortavelmente sentado na cadeira forrada a tecido preto. - Estou só a tentar terminar este relatório para apresentar na escola na segunda-feira. Isto de ser director de turma dá que fazer... Além disso, daqui a pouco temos que ir para casa dos teus pais para a leitura do testamento e...
- O quê?!
Após uma conversa mais animada ao jantar, fomos até ao tal bar que o Ricardo tinha falado.
O Ryan's era um bar irlandês, muito acolhedor. No piso térreo, deparamo-nos com um bar do lado direito comprido e mais ao fundo uma série de mesas redondas. A decoração remetia-nos tipicamente para a cultura irlandesa. Depois de subir umas escadas de madeira em caracol, fomos até ao segundo piso, onde os amigos do Ricardo nos aguardavam. Aqui estava um pequeno balcão do lado esquerdo numa sala com mesas baixas e uma segunda para fumadores. Sentámo-nos à volta da última mesa que fazia a separação de ambos os espaços. Assim, quem era fumador, como eu, podia levantar-se e com apenas um passo respeitar as regras impostas.
Eu não conhecia aquele bar. Eu não conhecia praticamente bar nenhum no Porto e acho que em nenhum outro sítio nas redondezas. O meu pai tinha os meus horários de tal maneira controlados, que saí poucas vezes à noite e já quando frequentava a faculdade, exigindo que me fosse buscar e que não aceitasse boleia de ninguém.
O Ricardo apresentou-me a Helena e o Rodrigo, o Nelson e a Mónica e ainda o Nuno, que viera sozinho, por indisposição da esposa Bianca. Todos eles eram amigos de faculdade, professores em exercício e outros sem colocação.
Sentia-me completamente desenquadrada ali, fazendo-me lembrar as palavras do Tiago a esse respeito. Tentei sorrir para disfarçar esse desconforto.
Era verdade que tinha conhecido o Ricardo muito antes que eles, tinha sido eu que o acompanhou na adolescência, foi comigo que ele teve várias primeiras vezes... E, contudo ali sentia que eu é que era a intrusa. Eles eram os amigos dele. Eu tinha sido a amiga que fugira, que lhe tirara o tapete debaixo dos pés, depois de lhe ter prometido que era a última vez que terminávamos o nosso relacionamento naquela tarde de verão, no meio do pinhal, quando nos decidimos candidatar a uma faculdade diferente.
A dada altura, umas das amigas do Ricardo, a Mónica, aproximou-se mais de mim e começou a falar comigo como se nos conhecêssemos há imenso tempo, praticamente palavras dela.
- O Ricardo falou-nos tanto de ti quando nos conhecemos. Sabes, cheguei a ter um fraquinho por ele, mas ele só falava numa Diana. E agora entendo porquê. Além de simpática, és bonita! - E em jeito de confidência - Adoro o teu cabelo. O meu é liso, o teu é volumoso e encaracolado. Que inveja!
- Obrigado - agradeci, um pouco constrangida com a situação.
- Olha, mudando de assunto, e desculpa se estou a tocar em algo que te seja... Bem, cheguei a pensar que fosses uma pessoa imaginária na vida do Ricardo e que, se existisses, não podias ter passado por tudo aquilo que ele nos contou e teres coragem para saíres de casa dos teus pais e enfrentar um mundo novo. É mesmo verdade tudo aquilo que ele disse? Que o teu pai era mesmo...
- Depende - respondi imediatamente - A parte em que o meu pai me controlava todos os passos ou aquele em que batia ou me castigava de outra forma e a minha mãe lhe dava razão, mesmo sem eu ter feito nada?
- Desculpa, Diana, não te queria transtornar...
Respirei fundo, tentando... Sei lá o quê...
- Não, não tens culpa. Eu é que não sou neste momento a melhor companhia. Também estou a atravessar por um divórcio complicado...
- Lamento muito...
Levantei-me e comecei a despedir-me.
- Gostei muito de vos conhecer, mas vou-me embora.
Desci as escadas e paguei o mais rápido possível a coca-cola que bebi, que preferi à cerveja irlandesa que não me agradou, para nem sequer dar tempo ao Ricardo de protestar.
Saí para a rua e apertei o casaco. A noite estava fresca e húmida, não fôssemos estar tão perto do Rio Douro. Virei à direita em direcção à Praça do Infante e tirei finalmente o meu primeiro cigarro da noite.
- Espera, Diana.
Não queria olhar para trás.
- Espera - voltou a repetir, alcançando-me. Puxou-me pelo braço esquerdo, fazendo com que o meu corpo rodasse sob os calcanhares, virando-me para ele.
- Porque é que te vais embora? Foi alguma coisa que eles te disseram?
- Não, Ricardo, não tem nada a ver com eles. Gostei muito de estar convosco, mas...
- Mas o quê, Diana?
- Enquanto estava a falar com a... com a Mónica, lembrei-me do que o Tiago me disse na nossa última discussão - levei o cigarro à boca, ao que segundos depois expeli o fumo para o lado - Parece que a minha vida se resume aos maus-tratos que recebi do meu pai. Estou farta disso. Já contei a minha história vezes sem conta. Estou farta!
- Mas isso faz parte da tua vida, Diana - enfatizou - Não podes esconder isso ou simplesmente ignorar.
- Mas eu já fiz coisas para além de sofrer como sofri. A tua amiga falou na coragem que tive ao fugir para Lisboa, mas não quis saber o que fiz lá, só o que me levou a fazê-lo.
- É triste, mas as pessoas sentem curiosidade... Mas não leves a mal a Mónica. Ela foi a primeira pessoa com quem desabafei tudo o que nos tinha acontecido, foi com ela que... É natural que ela se tenha entusiasmado demais!
- Mas não entusiasmo possível. Ricardo, vou para casa, vou apanhar um táxi.
- Não, Diana, deixa-me ao menos levar-te a casa.
- Agradeço, mas não. De certeza que se subir aqui esta rua, encontro alguma praça de táxis ou algo do género.
- Não digas disparates. Daqui à Maia, a viagem ainda é cara e não há necessidade para isso. Deixa-me levar-te a casa.
Apaguei o cigarro com a sola da bota e acedi ao pedido dele.
A viagem de vinte minutos foi feita em pleno silêncio, estando apenas o rádio a tocar música sem interesse para nós. Saí do carro dele, desejando-lhe secamente uma boa noite e fui para minha casa.