Ele seguia-a no seu carro, tendo a dada altura perdido a noção de onde se encontrava e já se questionava se teria feito bem aceder àquele convite.
Não sabia ao certo o receio, não sabia ao certo aquilo que lhe estava reservado, mas aqueles caminhos longe da cidade e mal iluminados não lhe agradavam.
Por fim, o carro dela abrandou e deu sinal para a direita, onde aguardavam que um grande portão de cor clara se abrisse. Ele conseguiu apenas visualizar um acesso em alcatrão, que se alongava em forma de arruamento até à lateral de uma enorme casa.
Estacionou o carro ao lado do dela, conforme as indicações de Juliana, saindo para ir ter com ela, que o aguardava perto da entrada frontal da casa.
- Não me digas que vives aqui! - exclamou. Perante o silêncio dela, depreendeu que era verdade. Na outra noite chamei-te princesa, por me teres deixado daquela maneira. Fizeste-me lembrar o conto da 'Gata Borralheira', mas parece que me enganei. És uma rainha e tens um castelo!
- Não exageres. - retorquiu, incomodada com a afirmação.
Ele subiu uma pequena escadaria e acompanhou-a para o interior de um amplo corredor, revestido a tijoleira castanha e paredes brancas, repleto de objectos decorativos impessoais. Viu alguns quadros pendurados e mobília trabalhada, que mostravam que a decoração se mantinha exactamente assim há já algumas décadas. A larga escadaria, que surgia do seu lado direito, dava a um segundo andar e era alcatifada, com um toque claro, sendo a úncia coisa que dava um aspecto mais habitável à casa.
Uma senhora alta e magra, com um simples uniforme de empregada, chegou praticamente no momento em que eles entraram.
- A Ema já chegou? - perguntou a Juliana.
- Não, senhora, ela foi buscar...
- Claro, eu é que cheguei mais cedo... Está bem, Ana. Nós vamos ali para o escritório. Traga-nos dois cafés.
- Quem é a Ema? - perguntou ele, agora curioso com tudo o que via.
Entraram numa divisão quadrada. As estantes de madeira escurecida ocupavam uma parede, com livros de publicidade, marketing e informática de um lado e de outro de medicina. Quase não havia lugar para romances ou policiais ou outros temas que não aqueles. Estava um sofá de pele castanha escura encostado à parede do seu lado esquerdo e uma secretária imaculadamente arrumada com o mesmo tipo de madeira das estantes à sua frente, recebendo a fraca luz do fim do dia por uma janela, com um cortina quase transparente bege.
- A Ema é outra empregada - respondeu ela, encostando-se à porte frontal da secretária, indicando-lhe o sofá.
- Bem, nem acredito que me trouxeste a tua casa. Nunca pensei que...
- Rafael, só pela casa, já deves ter percebido que há algo diferente entre nós. - adiantou ela.
- Porque és uma pessoa rica? Isso não é suficiente para me afastar de ti. - respondeu ele, seguro de si.
- Suponho que não. - respirou fundo, preparando-se para reviver um pouco do passado e da dor... - Bem, é o seguinte. Tu trabalhas na 'Ideias e Companhia' há quase cinco anos, certo?
Esperou que ele acenasse afirmativamente e prosseguiu:
- Deves lembrar-te então do outro sócio do José, o Filipe - só o facto de pronunciar o nome dele já a magoava.
- Sim, eu estava lá há pouco tempo, não o conheci muito bem, porque pouco tempo depois soube que ele se...
- Se suicidou! É a verdade! Podes dizê-lo. O cobarde suicidou-se!
Nota: O nome da empresa surgiu naturalmente, qualquer semelhança com a realidade, tal como a história, é pura coincidência.
Aqui vai o segundo texto desta nova história.
CAPÍTULO UM - PARTE DOIS
- Isa, faz-me um favor, quando vires o Rafael sair, avisa-me e empata-o. Quero falar com ele - disse Juliana, pelo telefone à recepcionista.
- De certeza? Ouvi dizer que vocês voltaram a discutir.
- Os rumores correm depressa - comentou friamente. - Não interessa se discutimos ou não, Isa, avisa-me quando ele sair.
Ela anuiu e desligou o telefone.
Juliana olhou o monitor e depois rodou a cadeira para a janela do seu gabinete. Tomara uma decisão e já não havia forma de voltar atrás. Não queria.
Pouco depois das seis da tarde, recebeu o telefonema pelo qual esperava. Pegou na carteira e no casaco e saiu desenfreada, descendo as escadas atabalhoadamente.
- Desculpa, Juliana, sei que não demoraste muito, mas ele não estava para conversa hoje, mas acho que ainda consegues apanhá-lo no estacionamento.
- Obrigado na mesma, Isa. Diz ao José que já saí e que depois lhe explico.
Saiu mais uma vez com pressa, abrindo a porta, desaforada, correndo para o que lhe pareceu ser o carro dele. Não tinha por hábito reparar nessas coisas.
- Espera, Rafael - pediu, batendo no vidro do lado do passageiro.
Ele olhou-a com desagrado. Não queria mais discussões. Talvez por isso, em vez de arrancar e ignorá-la, decidiu abrir a porta do carro e saiu.
- O que se passa, Juliana? - perguntou, impaciente.
- Eu quero somente que percebas que entre nós não pode existir nada - começou.
- Então agora já admites o que se passou entre nós? Já começava a pensar que tinha sido imaginação minha. - falou.
- Não precisas de usar sarcasmos comigo. O facto de eu te dizer que não vai resultar, é que há pelo menos dois motivos muito fortes para isso. - contornou o carro e aproximou-se dele.
- Ai sim?! - retorquiu ele, céptico da afirmação dela.
- Sim e se me deres oportunidade, sei de um sítio onde podemos conversar sem ser no nosso posto de trabalho, com toda a comodidade.
- E se eu te negar esse prazer? - perguntou, dando mais um passo na sua direcção.
- Acredita que não será prazer algum. - respondeu, retrocedendo. - Quero apenas que entendas, uma vez por todas, os meus motivos. Não quero continuar com as nossas discussões. Não é bom para nós nem para a empresa.
- Está bem! - acatou ele, continuando sem acreditar que finalmente após meses de sedução, iria saber os motivos de contínua rejeição.
- A viagem demora mais de trinta minutos. Espero que tenhas o depósito cheio. - afirmou ela, tentando evitar esboçar um sorriso perante a facilidade com que disse uma graçola.
No último post, escrevi que precisava de um título para a nova história que se irá desenrolar entre palavras ao vento durante os próximos meses aqui no blog. Não vos dei pistas algumas, mas agora fica aqui o primeiro texto. As personagens principais chamam-se Juliana e Rafael.
APENAS UMA NOTA: Esta nova história é um novo desafio para mim, porque não irá ser escrito na 1ª pessoa como foram os últimos três. Existe um narrador, que não interfere na história, que não tem qualquer ligação à história, ao contrário das outras, que foram a personagem principal feminina.
CAPÍTULO UM - PARTE UM
- Já estou farto, estou farto que continues a ser assim comigo, uma cabra fria e distante. - berrou ele.
- Pois, mas dou-te uma novidade: eu sou uma cabra fria e distante com todos. Não és especial! - afirmou ela, calmamente, sentada na sua cadeira, atrás da secretária, olhando o ecrã de computador e ignorando os gestos nervosos dele.
- Mas não foste assim naquela noite. Naquela noite foste diferente, naquela noite mostraste quem realmente eras: uma pessoa divertida, amistosa e...
- Eu estava bêbada! - reafirmou pela milionésima vez. Aquela discussão já começava a saturá-la. - Eu não me lembro de nada - declarou, finalmente virando o rosto para ele.
- Isso é o que tu dizes, isso é o que queres passar cá para fora, porque todas as pessoas aqui da empresa viram como tu eras.
- Pára com isso, Rafael! Não te iludas. Eu sou assim mesmo, tal e qual mostro diariamente. Agora se quiseres tratar de alguma coisa relacionada com trabalho muito bem - levantou-se da cadeira e afirmou com segurança - Se não, a porta é serventia da casa.
- É mesmo impossível falar contigo. Porque é que não admites?
- Porque não há nada para admitir!
- Porra, Juliana! - exasperou.
- Olha, vamos fazer o seguinte - disse, recuperando a calma. Adoptou um tom mais compreensivo e falou: - Se quiseres, podemos conversar o que...
- Já não quero saber de mais nada. Cansei! - e saiu do gabinete dela, dirigindo-se para o dele, com o rosto vermelho, tal tinha sido a irritação que tivera com ela.
Recuando um pouco no tempo.
Depois de uma convivência ténue nos últimos cinco anos na mesma empresa, os olhares calorosos e as discussões intensas entre Juliana e Rafael intensificaram-se nos recentes meses, após a promoção deste. A saída de um funcionário, permitiu que Rafael assumisse a posição de Responsável Comercial e com isso surgiu a necessidade de um maior contacto com Juliana, que acumulava diversas funções entre as quais a de Assistente Pessoal do Director da empresa. Eram praticamente situações burocráticas, mas necessárias, ainda que se tratasse de uma empresa pequena, onde todos, ou praticamente todos, se consideravam uma família.
As dúvidas que persistiam entre ambos tinham sido praticamente dissipadas numa saída nocturna, mas...
- Eu sei que já estás alegre, mas não me perguntavas, se não fosse realmente isso que querias - declarou o José, encostado ao balcão da discoteca, que se situava na Rua da Restauração, no Porto. Em vez do habitual fato, optara por uma calça, ainda que clássica, cinza, acompanhada por uma t-shirt branca e uma camisola de algodão preta com gola em bico.
- Talvez - respondeu ela, sorrindo como há muito não fazia, sentindo-se bem e relaxada, sem pensar muito nas consequências e foi precisamente esse o conselho que recebeu do amigo..
- Se quiseres ir ter com ele, Ju, vai. Não penses no amanhã, pensa só no hoje, só no agora - disse, bebendo a sua cerveja de pressão. - Ele próprio parece que te está a convidar para ires ter com ele...
Ela, decidida, atravessou a pista até ao balcão onde o dj colocava a música e exigiu naquele momento toda a atenção dele, afastando todas as pessoas da mesa, restantes colegas de trabalho. Ela sorriu, disse palavras simpáticas e voltou a sorrir. Ele não se coibiu de receber aquilo que há tanto desejava: que ela mostrasse o seu lado mais positivo da vida, que ele tinha quase a certeza que existia.
Ao som da música que passava nos grandes altifalantes, dançaram um com o outro, sem desviar o olhar. Os corpos moviam-se em uníssono, como se pertencessem um ao outro, como se se conhecessem desde sempre. Depois de um breve diálogo, não foram proferidas mais palavras, não era preciso... Aproximaram-se ainda mais, sentindo o calor que emanava deles, as mãos encontrando o caminho para o toque íntimo. Entrelaçaram os dedos e não mais se largaram. Até ao primeiro beijo foi uma questão de segundos. Ele baixou o rosto ligeiramente, adaptando-se à diferença de altura, e permitindo que o desejo finalmente tomasse o controle. Encostou os lábios nos dela e começou a beijá-la, sem sentir qualquer resistência. E foi tal e qual ele imaginou. Os lábios dela eram doces e macios.
Mas todo aquele momento mágico, todo aquele turbilhão de emoções, foi interrompido com a chegada de uma mensagem de texto ao telemóvel dela, pedindo que regressasse a casa.
Incapaz de o enfrentar, incapaz de admitir a si mesma e a ele que algo significativo se tinha passado, Juliana baixou a cabeça e, envergonhada, correu até ao José, que a acompanhou a casa...