Não me perguntes isso, João! Não me coloques nessa posição do não-retorno. Eu faço isso, eu é que comando isso... como não sei a resposta, peço que não o faças...
Tive mais uma oportunidade para viver. Tu deste-me mais uma oportunidade para aproveitar algo que não sei se quero. Deixa-me absorver essa ideia... deixa-me pensar o que quero fazer, deixa-me analisar se o sentimento que sinto por ti é suficientemente forte para me prender à vida. Ontem não o foi, não sei se hoje o será.
Amor. O que é isso? Há um ano senti que algo me impeliu para os teus braços. Mas agora não sinto que isso seja suficiente... Porém, consciencializar-me hoje, nesta cama gélida de hospital, que há a forte possibilidade - por tentar suicidar-me de novo ou simplesmente por decisão minha em afastar-te - que não te voltarei a ver, que não te terei novamente a meu lado quando acordar de manhã, que não voltarei a vislumbrar o teu sorriso, o teu riso acolhedor... Consciencializar-me que também te posso perder... Aguentaria tal golpe?
- Não quero que vás embora, quero-te aqui ao pé de mim. Preciso de ti.
- Foi assim tão difícil admitir que não queres estar sozinha? Que precisas de alguém ao teu lado? - Esboçou um ligeiro sorriso. Como eu gostava do sorriso dele.
Vi o olhar incrédulo do João.
Não sei se por ter vivenciado algo tão doloroso como aquilo, se por nunca lhe ter contado.
- Porque nunca me disseste?
- Só a mim dizia respeito.
- Não sejas assim. Tens pessoas à tua volta que gostam de ti e só te querem ajudar a ultrapassar a perda dos teus avós.
- Mas não foram as pessoas nem tu que perderam os avós como eu. Ninguém sabe como eu me sinto.
- Enganaste. Tu não deixas as pessoas se aproximarem de ti, mas todas sabem o que sentes. Não te inibes em mostrar o teu isolamento.
- Pois, mas não fui eficaz. Estás aqui, não estás?
- Não seja por isso, queres que vá embora?
Depois de covardemente ter desviado o meu olhar do dele, o quarto encheu-se de uma profunda interrogação e ele optou por me deixar sozinha. Que sina a minha...
Olhei o meu relógio pousado imóvel em cima de uma mesa de cabeceira metálica branco-hospital . Eram quatro horas. Hora do lanche. Uma mulher estranha de sorriso falso entrou com uma bandeja, que continha um pacote de bolachas e uma caneca de chá. Dieta?? Além de uma vigilância permanente, ainda tinha direito a uma refeição tão horrivelmente insossa.
Olhei novamente o relógio. Já tinha passado mais de uma hora depois de ele ter saído.
Regressou e eu sorri.
- Preparada para falar comigo? Se não o fizeres, acabas por falar com a tua psiquiatra. Como preferes?
- Nem com um nem com outro.
- Quando é que vais enfrentar a realidade, Luísa? Não podes continuar a ser covarde.
- Deixa-me.
- Não! Vais-me ouvir. Tu tens que aceitar que os teus avós morreram e que não podes fazer nada para alterar isso. É duro ouvir isto, mas eles morreram e pronto.
- Mas não foste tu que acordaste e olhaste para o lado e viste um corpo inerte, pois não? Não foste tu que acordaste depois de um dia doloroso com o velório do teu avô e na mesma cama que tu, estava a tua avó morta, pois não? Fui eu, fui eu!
- O que queres fazer da tua vida?
Que raio da pergunta, João. Não vês que não sei . Não vês que estou perdida? Não sabes que estou no limbo da vida e da morte?
- O ano passado aproximei-me de ti. Durante este tempo amei-te sem pedir nada em troca, a não ser o teu amor, ou o sentimento que restava dentro do teu coração cruel. Mas agora... agora estou a ficar farto que não lutes por ti, por nós. Eu não posso fazer tudo sozinho! - disse ele.
Estaria ele certo? Talvez tudo o que vivenciara nos últimos tempos me toldara a razão e os sentimentos. Tinha que aprender tudo de novo. Mas queria aprender tudo de novo?
Dúvidas. Dúvidas. Dúvidas. Estou farta de vocês. Deixem-me. Vocês podem-me abandonar. Não me importo de ficar sem vocês. Apetece-me gritar novamente. Grito silencioso. Grito mudo. Porque é que não consigo decidir o que quero e ponto final?
Não quero pensar mais em ti, avó. Não, como posso dizer isso? Como posso trair toda a dedicação de anos a mim? Mas eu quero viver, quero ser feliz, quero ser feliz com o João, quero dar uma oportunidade a nós, quero criar a minha família. Estou a tentar esquecer-te? Não, avó. Lembrar-me-ei sempre de ti. Queria estar ao pé de ti, ao pé de ti e do avô. Porque é que vocês foram embora? Porque tem que existir algo como a morte? Para terminar com a dor... será?